quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

22. O Chico da Ponte

Quando veio para este lugar, o Chico da Ponte que também era conhecido por Chico Lambelho, devido ao apelido de antepassados seus, andaria pelos 35 anos de idade, sendo a família constituída por ele, pela mulher e mais quatro filhos nascidos para os lados da ribeira da Meimoa, no sítio chamado Caçoa.
Aqui, no Chão de Alverca, vieram a nascer mais três filhos, formando um pequeno mundo de nove bocas, que todos os dias tinham de ser alimentadas.
Estaria a decorrer o ano de 1938 quando se mudou e os tempos eram de pouca fartura para quem, como ele, retirava da terra o sustento da família.

Chico da Ponte e mulher

Quando esta foi constituída, os haveres do casal limitavam-se a uma cama, uma mesa que se dizia ter sido feita de caixotes da sardinha, um fogão de fabrico caseiro onde se queimava lenha ou carvão e os apetrechos de cozinha absolutamente necessários.
Era ganhão no dia-a-dia, para além do amanho da terra de que dispunha para a sua horta.
Nunca frequentou a escola, mas surpreendentemente sabia ler e fazer contas.
Dizia que foi tendo a ajuda de alguém para quem trabalhou de ganhão, que lhe emprestou um livro da escola e o orientou na sua aprendizagem de autodidacta.
Mas foi à custa de muitas noites sem dormir, que à luz da candeia de azeite foi conhecendo as primeiras letras e praticou em pequenos cadernos as cópias que fazia dos panfletos contando histórias, que eram também cantadas ao som de uma qualquer viola ou concertina, em dias de feira ou mercado.
Uma dessas cópias, datada de 27 de Março de 1927, refere-se a um diálogo entre mãe e filha, chamando-lhe “interessantes concelhos que a mãe dava à filha para ela ficar solteira mas ela casou por gostar da brincadeira” e a certa altura do diálogo dizia a filha “eu tenho dezoito anos, creança não posso ser, a mãe da minha edade já filhos podia ter, eu quero saber porque forma, a este mundo vim ter”.
Tal como esta, outra cópia referia-se ao diálogo entre genro e sogro, onde os conselhos do sogro tinham em vista o bem-estar da filha.
Tais escritos são hoje uma relíquia guardada religiosamente, tal como as pequenas cábulas que então lhe permitiam fazer algumas contas.
Uma delas dizia: “querendo pesar um porco vivo e querendo dizcontár a quinta parte. x. o peso do porco por 8 e dividese por 10”.
Seguiam-se algumas contas aplicando esta regra e o resultado era o desejado e batia certo.
Uma outra cábula dizia: “outro proceço de contas querendo saber metade de um numero sem se dividir multiplicase por 5 e dividese 10”
E na mais humilde vivência, como era a do Chico da Ponte, descobre-se que a utilidade do saber ler, escrever e fazer contas é para si preciosa e bem aproveitada.
Porque a gestão do que produzia era já feita com o registo das sementes compradas e semeadas, o que resultava do seu cultivo e o valor realizado na sua venda.
Estes registos foram feitos com data de 25-5-1927.
O Chico da Ponte formava, com a sua mulher Maria Joaquina, um casal que aparentava ter poucos defeitos quanto à vida a dois, chegando à celebração das bodas de ouro matrimoniais.
Homem de poucas falas, nem por isso deixava de ser comunicativo, embora ponderando sempre as palavras antes de as dizer.
Talvez por isso, algumas vezes lhe foi ouvida a regra: “não digas o que pensas, sem primeiro pensar o que dizes …”
Também limitado nas palavras para com a própria família, havia no entanto momentos de excepção, quando os copitos ajudavam a desenferrujar a língua e então sentado à lareira contava algumas histórias aos filhos, antes de ser dominado pelo sono.
Nessas alturas até as anedotas apareciam e sempre contadas com muita graça.
Esses momentos aconteciam, por regra, nos dias de mercado semanal, feiras anuais ou dias de romaria, onde os amigos se encontravam e bebiam uns copos em alegre cavaqueira.
Mas a ida para tais momentos eram normalmente precedidos de uma preparação, que os entendidos diziam ser eficaz: bebia em jejum uma pequena quantidade de azeite, que teria o efeito de proteger as paredes do estômago do possível excesso de bebidas alcoólicas.
A verdade é que não foram muitas as vezes em que se viu num estado de embriaguez, que lhe toldasse a lucidez.
Por vezes, no regresso a casa lá vinha uma guloseima para os filhos, que por ser um gesto bastante raro, era apreciado sobremaneira.
Tendo o hábito de citar adágios populares, não dispensava também a orientação de alguns almanaques e publicações como o “Borda d’água” e o “Seringador”.
Nunca se viram excessos de linguagem perante os filhos, ou se aconteceram, foram muito fugazes.
Eles existiram, como é normal numa ligação matrimonial que durou mais de meio século, mas curiosamente quando havia discussões entre o casal este deslocava-se para o fundo da quinta e aí, longe do olhar de todos e principalmente do olhar dos filhos, discutia e resolvia os seus problemas.
Quando regressavam a casa o silêncio era absoluto e era esse silêncio que os denunciava quanto a uma qualquer discussão.
Raramente bateu nos filhos, essa tarefa ficava para a mulher, que era mais lampeira a “chegar a roupa ao pêlo” aos garotos.
Mas quando abria a boca para algum ralhete, o que estivesse mal depressa se corrigia.
A expressão “tu tá-te quieto…” dita duas vezes não deixava lugar a dúvidas – era para estar quieto.
Ou então “óh seu inganido, sai-me já daqui ou levas-me já com um xangôto…”, surtia efeito imediato quando pretendia espantar algum dos garotos que estivesse a atrapalhar a sua labuta.
Porque, se não, o “xangôto” , como ele designava uma pequena vara, podia trabalhar.
Estes episódios aconteciam muitas vezes quando estava a trabalhar na lojinha, onde as ferramentas ali existentes exerciam uma grande atracção para a garotada, que sorrateiramente se ia aproximando para lhe pegar e utilizar, quase sempre de forma incorrecta e prejudicial para o seu funcionamento.
Por isso também a expressão “que estás para aí a merdilhar…? larga já isso … !
Para a vizinhança, o Chico da Ponte era o homem dos sete ofícios.
Tal acontecia porque havia necessidade de recorrer a outras formas de ganhar a vida, para além do que a quinta fornecia como possível rendimento.

Chico da Ponte - um ganhão na venda do gado

Nuns momentos era ganhão, noutros já era tanoeiro ou marceneiro a fazer carros de bois e charruas de madeira, tal como reparava telhados, levantava muros em pedra ou ia crestar o mel das colmeias dos vizinhos, capar um porco ou fazer as enxertias.
E naturalmente tudo isso para além do que eram as suas actividades de agricultor, com o amanho das terras, sementeiras ou arranque de batatas, ceifa e malha dos cereais, que também fazia para outras pessoas que lhe pagavam por essas jornadas.
Quando acontecia ir crestar uma colmeia, era sempre uma oportunidade para algum dos filhos se aproximar e esperar que lhe fosse dado um pedaço dos favos já escorridos, para ainda dar uma última chupadela ao mel.
Com um deles aconteceu que dentro do pedaço dos favos vinha uma abelha que lhe prega uma ferroada no lábio superior.
No momento ainda se fizeram umas tentativas para minorar o efeito da ferroada, mas o certo é que o lábio inchou de tal ordem que no dia seguinte não quis ir à escola para não ser alvo da chacota dos colegas, porque na altura havia uma pessoa muito conhecida na vila chamada Chico Beça e com certeza não deixariam de o tratar assim, porque em casa também o fizeram, dizendo: – até pareces o Chico Beça !
Ora, quem não achava piada nenhuma era o atingido pela ferroada, até pelas dores que tinha no lábio.
Mas de todos estes ofícios, o que sempre despertava maior curiosidade era o da capação dos leitões, tanto pelo barulho que causava como pela operação em si.
Preparava o leitão para a pequena cirurgia, rapando a zona com a afiadíssima navalha de enxertia.
Feito o golpe com a mesma navalha, previamente desinfectada com a chama de uma lamparina de alcoól ou aguardente e extraído o recheio dos testículos do animal, deitava então uma pequena quantidade de azeite e cinza, cosendo depois com linha de costureira.
Quanto à cinza, só a de certas árvores é que era utilizada.
Olhando a operação a esta distância no tempo, pode pensar-se que muitos problemas infecciosos teriam atingido os animais.
A verdade é que as credenciais de capador foram mantidas por muitos e longos anos, tal como a de outra operação relacionada com os porcos, como era a de colocar o arganel no focinho, para que não destruíssem as camas que se convertiam em estrume nos seus currais.
Mas até num dos filhos, o Quim, eu vi fazer uma pequena cirurgia semelhante à da capação do porco, quando numa virilha lhe surgiu um enorme quisto, fruto de uma infecção no dedo do pé, por alguma topadela e ferimento não tratado.
Tal acontecia porque normalmente se andava descalço na quinta.
Desinfectados o local e a navalha de enxertia, embebendo esta com alcoól a que se pegava fogo, foi então feito um pequeno golpe de onde saiu uma enorme quantidade de pus.
Através da incisão foi depois introduzido mercurocromo e sulfamidas e não tardou que a ferida sarasse.
Tal como bem se percebe, o Chico da Ponte era o meu pai, quem foi picado pela abelha no lábio fui eu e quem foi operado ao quisto na virilha foi o meu irmão Quim.
Recordar o Chico da Ponte e a mulher Maria Joaquina, meus progenitores, é lembrar um casal mal aparelhado quanto à altura de ambos, pois ele era baixo e ela era alta, mas de uma estatura humana tão elevada que só pode ser grande o orgulho de quem lhes descendeu.
E nem a sua humilde condição ou o seu quase analfabetismo deixaram de proporcionar lições de vida que nos moldaram e nos encaminharam rumo a um futuro que, por mim, desejo que sirva também de exemplo aos meus descendentes.
A harmonia sempre foi uma forma de estar entre os sete filhos e por aí se pode avaliar o efeito dos exemplos que lhes proporcionou.
Da sua “cátedra da vida”, o Chico da Ponte soube proporcionar ensinamentos que jamais poderão ser esquecidos.

1 comentário:

  1. Conheci o ti Chico da Ponte homem trabalhador que soube dar aos filhos a educação maxima que se poderia ter na época
    Este capitulo está uma maravilha que adorei ler e reviver até algum tempo que não volta mais

    ResponderEliminar