domingo, 28 de fevereiro de 2010

Chão de Alverca, refúgio da memória

EXPLICAÇÃO
Sem invalidar a sua publicação em livro, tal como desejo, e disponibilizá-lo essencialmente para a família, é feita desde já a divulgação do seu conteúdo. Escrito despretensioso, apenas se insere na vontade de partilhar com os outros o que me vai na alma.Um regresso ao passado, através da memória, decorridas mais de seis décadas.
Voltar às origens, bem no meio do mundo rural, que me moldaram para a vida.
E desta forma homenagear os pais, muito humildes, que deixaram aos sete filhos a maior de todas as riquezas - o exemplo.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

VISITAS A UM LUGAR DE SONHO

1. A quinta

As dimensões daquele lugar eram enormes para mim, enquanto lá vivi. E foram cerca de 17 anos. Não que fosse difícil percorrer a distância que ia da eira até ao fundo da quinta, na parte contígua ao vizinho Rodrigo e à ribeira que a banhava pelo lado poente, a seguir ao limite da “quinta da vizinha”, que parecia encastrada entre a ribeira e a nossa quinta.
Mas a perspectiva em que eu a via, tornava-a duma enorme grandeza.
E essa perspectiva era a de alguém que ali abriu os olhos para o mundo e viu surgir perante eles aquela imensidão de pequenas e grandes coisas, que transformam a natureza num tesouro que nunca valorizamos como deve ser.
Era a “nossa quinta”, se bem que para dela podermos usufruir tivesse de ser paga renda, mais dois terços da azeitona e parte da lenha que os proprietários se encarregavam de seleccionar e colocar à sua ordem, fazendo cortar as árvores envelhecidas, como acontecia com as oliveiras.
Em quase todas as situações era o próprio rendeiro que tinha de levar-lhes a lenha a casa, já cortada no tamanho adequado ao seu consumo.
Um tempo em que o pequeno rural poucas oportunidades tinha para modificar a curvatura das suas costas, face aos senhores das terras.
A casa, virada para a eira, tinha as suas traseiras para a estrada nacional 343 e o seu acesso era feito através do portão que dava para a não muito larga passagem, que dum lado tinha a porta da casa e do outro a porta da “lojinha”, o nome que dávamos à arrecadação das coisas rurais, que ali existia.
Logo a seguir a esta arrecadação e também em frente, havia currais ou pocilgas, que nem sempre estavam ocupados.
Sobre o curral que se via logo em frente estendia-se a velha videira de uvas muito tintas e que só para o vinho eram boas, proporcionando sombra aos “moradores” que por lá iam passando.
Porque estes, quando gordinhos, tinham o destino traçado – a matança e o abastecimento da salgadeira - que por sua vez haveria de abrir-se muitas vezes ao longo do tempo, até esgotar o seu conteúdo.
E quanto mais vezes se abrisse, melhor seria para a mesa dos seus donos.
Outros ainda, seriam destinados à venda, que se fazia em dia de mercado semanal, na vila que era também a sede do concelho.

A nossa mãe com a prima Amélia, do S.Braz, junto ao curral com a videira

Um pouco mais além, estavam também as capoeiras, onde os galináceos tinham os seus domínios.

As irmãs Anunciação e Fernanda, junto à capoeira

Para a esquerda, ficava a eira, que numa quinta exercia uma função da maior importância e, para além dela, o tanque, que tanto era abastecido pela água do poço da “pontaria” ou nora de alcatruzes, movida pela vaca, como pela água que vinha da ribeira ou da adua.
Depois da eira e para a direita começava o canchoso e a seguir a este a quinta propriamente dita, numa primeira faixa até ao cômoro de cima.
O canchoso, com a sua vedação em cana, era um espaço que permitia a cultura e desenvolvimento de todos os produtos hortícolas, protegidos dos tais galináceos que ali eram criados e que tinham grandes oportunidades para se movimentarem livremente pela quinta, sempre que não houvesse sementeiras ou produtos importantes expostos aos seus vorazes bicos. Mas não tão protegidos estavam os produtos hortícolas do canchoso, que de vez em quando não fossem invadidos por alguns desses animais, sempre que conseguiam esgravatar buracos na paliçada ou sobre ela se projectavam em voo picado.
Quando tal acontecia, o resultado era sempre desastroso para a horta.
Nessa área, que digo mais ou menos protegida, havia o poço com escadaria interior até à bica, que no verão abastecia a casa com a sua água.
A água que também servia para regar a horta, mas que tinha de ser retirada manualmente com o “burro” ou picota.
O poço tinha a sua borda ao nível do chão, ou seja, não havia qualquer vedação física acima deste, mas à sua volta havia uma pequena faixa de jardim, onde havia muitas outras flores, mas a que mais me recorda existir era a dos lírios, pelo facto de muitas vezes cortar uma das suas folhas, meter no meio uma palha e assim criar uma espécie de corneta que, quando soprada, emitia um som muito característico.
E esse jardim, que não podia ser pisado, constituía então a área de segurança que nos protegia relativamente ao poço.
Talvez porque sempre foi respeitada a área de segurança, nunca houve qualquer problema mesmo com os garotos mais pequenos, cuja curiosidade os torna menos cautelosos que os adultos e por isso mais sujeitos ao acidente.

Em primeiro plano, à direita, com irmãos, cunhado e vizinhos, apenas alguns. Por trás, o canchoso

Mas o canchoso não era só hortejo, pois tinha bastantes árvores de fruto, das quais se destacava a figueira de qualidade “castelo de vide”, com o seu majestoso porte e onde colher os figos em segurança, só de escada ou de roca, embora o rapazio não estivesse com meias medidas para trepar até aos sítios mais altos, apesar da fraca consistência das pernadas que, com os anos se tornavam mais volumosas, mas de grande fragilidade.
Mas também havia cerejeiras e pessegueiros.
Era um espaço que tinha a função de abastecer a casa de todos os produtos frescos, como alfaces, couves, ervilhas, feijão verde, favas e muitas outras plantas aromáticas, que hoje em dia qualquer praça proporciona aos habitantes dos aglomerados urbanos.
Simplesmente, estes produtos tinham mais garantias quanto ao seu cultivo biológico.
Fora dessa área mais protegida começava a terra de cultivo ou de sementeira.
No espaço que ia até ao cômoro do meio e, finalmente, até ao fundo, estendia-se a quinta que já se disse ser contígua à do Rodrigo e à ribeira.
Partindo do tanque, havia o rego da água que a atravessava do cimo ao fundo, proporcionando a irrigação onde se quisesse.
Ao seu lado a vereda, que de tanto ser calcorreada, se apresentava isenta de qualquer erva, mais parecendo varrida a todo o instante.
As árvores de fruto existiam praticamente em toda a quinta, embora predominando em maior quantidade perto da casa, numa estratégia de proximidade às habitações, que praticamente era seguida em todas as pequenas quintas, o que teria a ver com a protecção das mesmas.
Na área mais afastada da habitação era o lameiro com algum olival, embora existissem oliveiras em quase toda a quinta e, para o lado da ribeira, a parte mais árida.
Como atrás se disse, a quinta tinha praticamente todo o tipo de árvores de fruto, e só de pensar nalgumas delas me faz crescer água na boca, como é o caso das cerejas, as peras, as maçãs das mais variadas qualidades, mas com destaque para a “bravomofo” ou correctamente “bravo de esmolfe”, os malápios, as uvas, os figos, os abrunhos, as ameixas, ou até os de características mais selvagens, como as amoras silvestres, os “perinhos do menino Jesus” e, no seu momento certo, os de horta ou de rastejo, como o melão ou a melancia.
Mas muitas outras ficam por enumerar.
Se a localização das árvores de fruto era estrategicamente mais perto da habitação, já as videiras se estendiam ao longo dos cômoros, visto que as latadas em que eram dispostas tinham também uma função de divisória, a demarcar leirões ou mesmo a propriedade entre vizinhos.
Existia depois a videira que, além das uvas também produzia sombra, como era o caso das existentes sobre o curral ou sobre os galinheiros.
Mas a produção da quinta não se ficava pela fruta, pois havia também os cereais, como trigo, pão, aveia e outras forragens, que permitiam a criação dos animais que já foram referidos e ainda as vacas, ovelhas ou cabras, embora sempre em número reduzido.
Aquilo que na linguagem das pessoas do campo se designa por “vivos” e que, nas circunstâncias, eram também uma fonte de rendimento a quando da venda da descendência e, enquanto produtores de leite ou de carne, no seu abate, eram também o sustento da família.

A porca com a sua ninhada

Era com a produção dos cereais que normalmente se pagava a renda à senhoria, embora da parte sobrante da produção fosse em primeiro lugar abastecida a casa com a farinha que havia de dar lugar ao pão que lá se consumia, para além de alguma parte que produzia um rendimento necessário à família, e que era entregue na cooperativa ou aos intermediários da sua venda.
Mas para converter os grãos em farinha, alguém havia de os levar à azenha da senhora Delfina, na ribeira de Alverca perto da Ponte Romana, transportando-os na taleiga, que quando não muito pesada, ainda ajudei a transportar.
Aplicada a mesma regra à azeitona, da parte do rendeiro ficava a que, retalhada e adoçada do seu agre, era consumida em casa, mas também se dava ao lagar para ser moída e dela se extrair o azeite que poderia ser vendido em parte, mas sempre depois de se retirar aquele que iria ser consumido pela família.
Embora os tempos fossem de poucas farturas, ainda assim, podia aplicar-se o ditado que diz que “quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é burro ou não sabe da arte”.
Por isso, nunca existiram queixas quanto à qualidade do que era consumido na família e não só, pois os parentes e amigos, quando apareciam na hora do comer, sempre foram convidados a sentar-se à mesa, onde não faltava um lugar para eles, do mesmo modo que o tinham à volta do pipo ou salgadeira, se fosse o momento oportuno.
Importa referir ainda os marmelos, que se transformavam em marmelada e que na época própria não deixava de ser feita, tal como o licor que também deles derivava.
Mas os marmeleiros, na sua floração proporcionavam ainda à garotada, através das suas pétalas, um petisco muito apreciado e que era chamado de “galula”.
Tinham de facto um sabor muito especial as pétalas da flor do marmeleiro e disso era prova o assédio que as abelhas lhe faziam.
E tais abelhas eram também habitantes da quinta, nalgumas colmeias que existiam para a produção de mel.
Eram, pois, estas as características da pequena quinta, chamada de Chão de Alverca, cujo nome lhe era dado pela sua localização junto à ribeira que também assim se chamava, perto da ponte, na estrada que liga o Fundão a Valverde.
E se apenas estes nomes são referidos, é porque os horizontes dos então moradores se estendiam praticamente a estas duas povoações – Fundão e Valverde.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

2. A casa

Numa casa de quinta, que desta se disse já estar encostada à estrada nacional, as acomodações são normalmente criadas e adaptadas conforme as necessidades, tanto em relação às pessoas como aos outros seres vivos.
Sei que a minha cama era numa espécie de camarata, paredes-meias com a loja das vacas.
Antes, recordo terem existido tarimbas no espaço mais amplo, onde se criou essa espécie de camarata.
E esse alojamento teve de ser feito, porque numa família que foi aumentando até sete filhos, para além do casal, eram necessárias acomodações destinadas aos rapazes da casa.
Porque os pais e as raparigas estavam instalados nos dois quartos contíguos, no centro da casa.
Até onde a memória me leva, recordo ter dormido aos pés dos meus pais, no lado da minha mãe, junto à parede.
Sei que era muito pequeno, embora não saiba se foi de forma continuada ou apenas num dado momento e por qualquer razão especial, como o de uma qualquer doença.
E uma visão também gravada na memória era que, ao olhar para cima, no meu alinhamento havia uma tábua larga suspensa do tecto, onde era colocado, coberto com uma toalha, o pão que vinha do forno, sendo retirado dali à medida que era consumido, o que durava cerca de uma semana.
Mais tarde o pão passou a ficar na “arquinha”.
Acontecia, por isso, ficar no quarto um aroma muito agradável quando o pão, acabado de coser, ali dava entrada.
Quando já não havia lugar aos pés de minha mãe, mas ainda pequeno, tive então uma cama só para mim, feita em madeira com um gradeamento que achava fantástico e que nunca me cansava de acariciar e polir com as mãos, colocada no meio e em posição perpendicular às outras duas camas da camarata.
Uma obra de marcenaria feita pelo meu pai, que depois terá sido dada a algum sobrinho ou afilhado.

Outros tempos, outras gentes - a esquina da casa com a lojinha ao fundo

Mas a planta da casa era muito simples.
Tinha a sua entrada a partir da tal faixa que, do outro lado, tinha a lojinha.
A partir da porta e num amplo espaço, que foi dividido com uma taipa em madeira, havia para a esquerda a cozinha, deixando o resto para a sala das refeições.
Esta parte, toda ela forrada a madeira por cima, tinha para além da mesa familiar, o arcaz, onde se guardava todo o tipo de cereais, e uma outra arquinha, que já referi atrás, onde se guardavam variados produtos comestíveis, como o pão para ser servido às refeições, que ali se mantinha sempre macio.
Mas havia outros móveis e uma cantareira, de que me lembro ser enfeitada com papel colorido com uns recortes que pareciam bordados.
Já foi referido que a cozinha era apenas forrada em parte, uma vez que no sítio da lareira era em telha vã, para o fumo sumir.
Também aqui havia uma outra cantareira, onde se guardava loiça mas também os cântaros da água, e por isso o seu nome.
E lá ao canto havia a pilheira, ou seja, o sítio onde se juntava a lenha e se ia acumulando alguma cinza até ser retirada, para ser espalhada nas terras de determinados cultivos ou de plantas, como os alhos.
E era nesse canto da lareira, com o lume a crepitar, que muitos invernos foram passados, com as histórias a animar os longos serões. Algumas serão desenvolvidas noutro capítulo.
O cantinho sobre a lenha era sempre muito disputado pelos mais pequenos, já que os maiores tinham o seu assento nos mochos e bancos de madeira que ali havia.
Mesmo rindo das histórias, muitas vezes se chorava, porque o fumo remoinhava e vinha para os olhos que se defendiam com as lágrimas.
Era então que algum dizia: “o fumo vai para os formosos e tanto lhes dá até que os põe ranhosos…”.
Passando pela sala, com os dois quartos, passava-se ao espaço onde foi feita a camarata, que apenas ocupava uma pequena parte.
Todo o resto era arrecadação e depósito de muitos produtos e material agrícola, dali partindo uma escada para o sótão, por nós chamado de sobrado, que também era local de arrecadação de muitos produtos agrícolas, alguns dos quais haviam de ficar durante o inverno, como cereais, maçãs, figos secos, etc.
Continuando em frente, chegava-se a uma pequena porta que dava para a loja das vacas.
Era o estábulo onde havia quase sempre duas vacas adultas e por vezes um ou dois bezerritos, que eram uma atracção para nós.
Algumas ovelhas ou cabras também ali estavam instaladas, por vezes com as suas crias, embora afastadas das vacas, que as não toleravam ao pé de si.
E até os poleiros das galinhas estavam neste espaço, embora dentro duma capoeira suspensa em estacas e com entrada dos animais por um buraco através da parede, para o exterior, de onde se recolhiam ao anoitecer.
Claro que havia sempre a preocupação de tapar a entrada, não acontecessem como aconteceram, as visitas de alguma raposa ou de cães que gostavam de ir recolher ovos.
Sucedeu aliás, que a forma de desabituar um desses cães, foi encher o cascarão dum ovo com borralho quente e deixá-lo lá como isco.
E o remédio foi eficaz, pois o cão caiu no engodo e queimou-se.
Não mais lá voltou.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

3. Sanita ou estação biológica de tratamento

Ainda no canchoso, bem lá no canto do marmeleiro, detrás da lojinha e longe da vista das pessoas, existia o pote enterrado no chão, com uma tampa de madeira provida de pega.
Era a “sanita”, que na rudeza das palavras dos moradores se designava de cagadouro, com funções de estação biológica de tratamento, uma vez que toda a matéria orgânica era dela retirada, já liquefeita, para fertilizar a horta.
E problemas de saúde nunca foram detectados, que pusessem em causa a eficácia desta estação de tratamento.
Nada se perdia, tudo se transformava.
Para nós que nos habituámos a este tipo de “sanita”, tudo era normal.
O pior foi quando recebemos a visita de um “senhor doutor da vila”, convidado para vir comer das nossas cerejas e que, perante o tão apetecido fruto, não hesitou em comê-lo da árvore, ainda quente, sem ser lavado e até ficar bem saciado.
Não passou muito tempo até que os intestinos lhe exigissem descarga acelerada e, perante tal exigência, perguntou onde era a casa de banho.
Colocado perante a nossa “sanita”, gerou-se uma situação muito embaraçosa, pois estava habituado a sentar-se na que seria a sua e, ali, teria de ficar de cócoras em equilíbrio sobre a abertura do pote.
Para além disso, o “papel higiénico” limitava-se a papel pardo de embrulho ou de jornal, o que também levantou algumas hesitações.
Foi quando nos lembrámos que o vizinho tinha, para o pessoal que trabalhava na sua oficina de carroças e carros de bois, uma casota que servia de latrina, implantada sobre o regato da água e já com uma base a formar um assento com abertura no meio.
E lá se conseguiu ultrapassar a situação resolvendo aquele aflitivo problema derivado da ingestão de cerejas quentes, mas quanto ao “papel higiénico” teve mesmo de se desenrascar com o de jornal.
Acontecia connosco, que na hora de “ir à quelha”, como dizia a avó Amélia, ou “ir a campo”, como também vulgarmente dizíamos, se não havia jornal ou outro tipo de papel, a limpeza se fazia com uma pedra ou então com um casulo do milho, que no fim mais parecia um favo de mel bem atestado.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

4. A eira

Havia também um destes espaços e bastante grande, situado em frente da casa, onde se desenrolavam as mais variadas e importantes actividades relacionadas com a vida rural da quinta, com destaque para as que tinham a ver com os cereais.
Enquanto não era utilizada para esses fins específicos, ia servindo de campo de futebol para a garotada, embora a posição do tanque na cabeceira tivesse os seus inconvenientes, uma vez que a bola estava constantemente a ser retirada da água.
Mas era também na eira que, em pequeno, de verão e ao sol, nos era dado banho dentro de uma celha que normalmente era utilizada para a barrela da roupa.
E a temperatura da água era a que tinha no tanque em que era recolhida.
Em casa o banho era-nos dado numa bacia bastante grande e com diversas utilizações, embora nessa altura a água fosse aquecida.

O rolheiro da palha - atractivo das crianças

Na maior parte do ano, à eira não era dedicada uma atenção muito especial, limitando-se a ser local de armazenamento de palha que resultava das malhas do cereal, que ali eram feitas, colocada na forma de rolheiro e protegido com uma cobertura de colmo para evitar a infiltração de água, que poderia fazê-la apodrecer.
Mas o espaço era aproveitado para muitas outras actividades, como a descamisa do milho, que proporcionava momentos de muita alegria e de oportunidades para se iniciarem contactos entre raparigas e rapazes, que dariam lugar a namoricos ou mesmo casamentos.
Durante a descamisa, o divertimento acontecia sempre que algum rapaz ou rapariga tinha a sorte de lhe calhar uma das maçarocas de milho acastanhado ou ouro velho, chamada de milho-rei, sendo a segunda maçaroca com estas características a indicação de que deveria unir-se com a primeira.
Quando a segunda maçaroca não ia parar às mãos do rapaz ou rapariga interessada, criava-se o estratagema de a fazer lá chegar.
De qualquer modo, o fim da descamisa proporcionava sempre um bailarico, que tanto podia ser animado por uma concertina ou um simples realejo, como era chamada a gaita-de-beiços.
Ainda um acontecimento também marcante, acontecia no Outono, precisamente no dia de São Martinho ou em dias próximos, com o tradicional magusto.
Toda a animação que lhe era própria, também acontecia, envolvendo vizinhos e amigos.
Também ali se desenrolavam muitas outras brincadeiras da gente jovem, como o jogo da corda ou do lançamento do ringue, e outros próprios das crianças, como os jogos do pião, do berlinde, das escondidas e até da bilharda, embora este jogo tradicional criasse diversos problemas aos vidros das janelas ou às telhas, quando o lançador a projectava desordenadamente nessas direcções.

Jogando à corda - a eira e o tanque

Em tempo de Carnaval, aconteciam os jogos tradicionais próprios da época, com destaque para o lançamento do panelo ou vaso de barro, que era projectado de pessoa em pessoa até que alguém, não conseguindo apanhá-lo, o fazia estatelar-se no chão feito em cacos.
A malha, de que resultava a palha armazenada, era o momento alto da vida de uma quinta, só superado por algum banquete de casamento ou baptizado. E o de uma boda de casamento da minha lembrança, também aconteceu ali. Mas será desenvolvido noutro capítulo.
Dependendo da quantidade de cereal a malhar, durava um ou dois dias e nela participavam muitos familiares e vizinhos, que depois teriam a merecida recompensa ao serem ajudados nas suas próprias malhas, pelos vizinhos que agora tinham ajudado.
Era a cooperação entre vizinhos e familiares, que se dizia ser “a merecer”.
No entanto, a preparação da eira começava alguns dias antes, reparando buracos e sendo barrada com uma mistura muito aguada de barro e excremento de vaca.
O barro, que já tinha sido recolhido nalgum barreiro para os lados da serra, era bem esmagado e joeirado para que ficasse pronto a ser dissolvido na água.
Espalhava-se então essa aguada de barro pelo chão, de modo a criar uma película uniforme que, depois de seca, iria impedir que os grãos dos cereais malhados se infiltrassem, ficando em condições de ser recolhidos e ensacados.
Até ficar seca, depois de barrada, nem pessoas nem animais podiam transitar pela eira.
Por vezes, alguma galinha conseguia soltar-se e era um desastre, pois esgravatava aquele tapete de barro e lá tinha de fazer-se tudo de afogadilho, principalmente se o dia da malha já estava perto.
Havendo muita gente empenhada na malha, naturalmente que tinha de fazer-se muita comida para alimentar aquelas pessoas.
Matavam-se alguns animais, já destinados para essa ocasião, e lá vinham as vizinhas e familiares ajudar a confeccionar a comida.
Era mesmo uma boda.
Mas até ao momento de os malhadores se sentarem à mesa, havia diversas pausas para refrescar as gargantas com uma mistura de vinho, água e açúcar, a que era dado o nome de champorrião.
Sendo em altura de muito calor que aconteciam as malhas, os malhadores tinham de compensar os líquidos derramados pela transpiração, fazendo-o nestas breves pausas.
Aconteciam então cenas muito curiosas e inolvidáveis, como a de um tio que se deitava de costas na palha e, de boca aberta, permitia que para lá despejassem o champorrião, que se infiltrava sem qualquer movimento da garganta, a engolir.
Todos os que tentavam imitar a situação, reagiam de forma aflitiva, engasgados com o líquido.
A arte de malhar a mangual, não podia ser desempenhada por quem não tivesse experiência para tal, uma vez que o batimento se fazia à vez sobre as molhadas de cereal, dispostas em filas, pelos malhadores alinhados em filas de cinco ou seis, uma em frente da outra.
Para que as filas dos molhos do cereal não se deslocassem, à medida que iam sendo batidas pelos malhadores, colocava-se alguém no topo com um dos molhos do mesmo cereal espetado numa forquilha, dizendo-se que essa pessoa, normalmente um dos mais novatos, estava a fazer a bicha.
A malha ao ritmo do mandador
Todos os malhadores com o seu mangual, teriam de fazer girar o perítico, ou popularmente “pirto”, para o mesmo lado, de modo a não se tocarem sobre as cabeças e causar algum dano.
O mangual
Quando algum canhoto fazia parte do grupo, normalmente era colocado numa ponta, de modo a não atrapalhar os demais.
E o batimento cadenciado e quase sempre comandado por um som gutural emitido por um mandador, lá se ia repetindo ao longo do dia por aqueles homens que, para atenuar o peso da roupa, apenas vestiam ceroulas brancas e camisolas interiores, normalmente com mangas, para se protegerem da poeira dos cereais que também causava alguma irritação à pele.
As ceroulas eram bem ajustadas ao fundo da perna pelos nastros, procurando evitar que as espigas ali se introduzissem, visto que estas se deslocam sempre para cima e são intoleráveis.
Chegava a hora da refeição e então era a festa, principalmente para a garotada, não tanto pela comida mas pelo privilégio de se sentarem ao lado dos malhadores.
E essa festa era ainda maior quando a malha terminava e se retirava a palha, para virem a ser formados os rolheiros.
Os garotos brincavam, dando cambalhotas e perfurando a palha, prolongando-se o dia pela noite dentro ou até mesmo ao dia seguinte, pois nesses dias havia autorização para levar uma manta e dormir ao relento, na palha.
E em noite de céu estrelado, com ausência de luminosidade ambiente, surgia então a oportunidade de observar no firmamento a Via Láctea e as constelações, ouvindo dos mais velhos a história do “caminho de Santiago”.
Na forma tradicional que foi descrita, haviam de acabar as malhas, pois começaram a surgir as debulhadoras ou malhadeiras, primeiro, movidas a motores que funcionavam a lenha e carvão e, depois, a petróleo e gasóleo.
Não fomos dos primeiros a ser contemplados com esta forma de fazer a malha, pois o acesso à quinta não permitia que as primeiras máquinas, muito volumosas, lá chegassem.
Era então levado todo o cereal para a quinta do vizinho e aí se fazia a debulha por essa forma mecânica.
Mas foi na eira que um dia, ao regressar da escola, encontrei minha mãe e mais duas ou três pessoas a apanhar o sol de um fim de tarde outonal.
Já tinha passado pela cozinha e recolhido uma fatia de pão, que tinha ensopado com o azeite de uma fritadeira, e que ia comendo.
“Dei a salvação” aos presentes com as “boas tardes” e logo minha mãe me diz num tom pouco amigável:
- Come lá o pão, que já conversamos.
- Mas o que é que eu fiz ? – perguntei, sabendo que aquela conversa iria colocar-me na mira da mão lampeira de minha mãe.
Foi então explicado que o Quim da vizinha havia retirado da gaveta da taberna dos pais alguns escudos para comprar rebuçados dos cromos da bola, que eu o tinha incentivado e também tinha participado no gasto do dinheiro.
Dessa vez não era verdade, embora noutras ocasiões tivesse usufruído da compra dos números da bola, que eram vendidos na vila, na taberna do Zé Carlos.
Choraminguei, argumentando que não tinha qualquer culpa e escapei-me o mais que pude, sem que tivesse levado qualquer castigo.
Passado pouco, de novo sou chamado por minha mãe para ir fazer um outro recado e então diz-me:
- Mexe-te, porque já levaste duma e ainda levas doutra.
Foi então o alívio, porque julgou ter-me batido, mas afinal nada acontecera.
Era na eira e ao sol que também muitas vezes acontecia a desinfecção das nossas cabeças, quando se detectava algum piolho, o que era normal acontecer com os garotos nas escolas.
Nas raparigas era com um pente de dentes mais espessos que se desenguiçava o cabelo e que a seguir era escovado.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

5. O tanque

Só por uma questão de disposição no terreno foi referida a eira antes de ser referido o tanque, uma vez que, sem água, não há produção de cereais.
Aqui, era empresada a água que vinha da ribeira, da adua ou da “pontaria”, que era movida por uma vaca, dependendo da época do ano e das disponibilidades deste precioso líquido.
O que foi o poço da pontaria ou nora
Outros tempos e outras gentes - tudo diferente
No inverno, naturalmente que se encontrava sempre cheio, não acontecendo o mesmo em todos os momentos do verão, altura em que ia escasseando a água.
Quando acontecia que o tanque era cheio com a água da adua, muito trabalho decorria até que ela chegava aqui.
Ao referir-se a água da adua, isso quer dizer que estava a usufruir-se da água comunitária que era distribuída pelos pequenos agricultores da zona.
A água vinha da ribeira, no sopé da Gardunha, mas previamente era concertado entre todos os que dela beneficiavam, qual o tempo que cabia a cada um e a hora em que tal acontecia.
Eram então preparadas as levadas por onde a água chegava aos que dela usufruíam, todos participando nesse trabalho.
Quando o tempo que nos pertencia era de noite, havia que vigiar se as levadas não tinham fugas, porque muita vez acontecia que a água não chegava ao destino e era importante que se descobrisse o motivo da falta de água e colmatar a brecha, quando ela acontecia.
De um modo geral, o tempo de cada um era respeitado, no entanto, sempre ia acontecendo que os que se encontravam a montante provocavam rupturas que pareciam buracos das escava-terras ou toupeiras, aproveitando-se do que corria enquanto o beneficiado dessa hora não ia à procura da brecha para a reparar.
Abastecido o tanque, havia então os momentos da rega, através dos regos ao longo da quinta e que era feita com as pessoas descalças dentro da água.
No tanque, era normal ver-se dentro de água alguma masseira onde se fazia o pão, para ser lavada.
Quando a garotada se apercebia do facto, lá estava a tentar improvisar um barco, embora sem grande sucesso, visto que o lastro era demasiado pequeno para aguentar com o seu peso, apesar de garotos.
E numa dessas ocasiões o Quim da vizinha, que era sempre muito atrevido nas brincadeiras, monta na masseira e tenta pôr-se em pé.
O resultado foi um banho em pleno inverno, totalmente vestido, depois de baloiçar desordenadamente e tombar para a água.
Era também no tanque que havia os lavadouros, onde as mulheres se ajoelhavam para lavar a roupa, que depois era posta a corar sobre a relva, até ser de novo passada por água e posta a secar.
Muito próximo do tanque, havia o já citado poço da pontaria ou nora, movida por uma vaca, que fazia girar os alcatruzes e com eles retirava a água do poço.
Mas era também ali que, no inverno, se abrigavam os pardais, o que permitia dar-se-lhe caça em certas noites.
Tapada a boca do poço com um toldo e fazendo barulho no seu interior, logo os mesmos saíam dos buracos das paredes, vindo esbarrar e prender-se no toldo.
Dali eram retirados e depois amanhados, para um petisco muito apreciado.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

6. A fonte

Embora existindo uma bica para recolha de água potável no poço do canchoso, a mesma só era funcional no verão, quando o nível da água descia, permitindo o acesso à bica.
Havia então a fonte situada já no lado da vizinha, mas onde todos podíamos ir abastecer-nos.
As suas características tornavam-na também um lugar de recato propício a brincadeiras ou aventuras de miúdos, que se procurava não ser do conhecimento dos pais ou outros adultos.
Tinha a forma de uma vala em L cavada no chão, com cerca de um metro de largura e mais de dois metros na parte mais profunda, onde se encontrava a bica com uma prancha de madeira em frente, à qual se chegava pela escadaria que ia da superfície até à prancha.
Por ser um local escondido, aí começaram por exemplo as primeiras experiências no fumar de cigarros feitos da melena seca do milho, embrulhada no papel de mortalha que se vendia para fazer cigarros manualmente.
Quando aconteciam encontros com outros garotos ou garotas vizinhas para recolher a água, era certo e sabido que o cântaro iria demorar muito tempo a encher, pois as brincadeiras só terminavam quando os pais reclamavam a água em casa.
Mas por ser um lugar muito fresco no verão, costumava estender-me de costas na prancha enquanto a vasilha enchia, e não raro aconteceu ter adormecido e só acordar quando alguém chegava ou começavam a chamar-me devido à minha demora.
Numa das vezes que fui à fonte encontrei-me lá com um dos outros garotos vizinhos, numa idade em que a mudança física nos levava já a brincar com o próprio corpo.
E sentados na prancha, com os pés dentro de água, a certa altura resolvemos entregar-nos, ao desafio, à prática de uma das formas de onanismo, a masturbação.
Qual não é, porém, a nossa surpresa, quando olhamos para cima e vemos uma irmã do meu companheiro a olhar para nós, de olhos esbugalhados pelo espanto.
Quando se viu descoberta, saiu numa correria desenfreada, enquanto para nós sobrava a atrapalhação de sermos apanhados em acto que a moral cristã considerava pecaminoso.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

7. A matança do porco

A par da malha dos cereais, a matança do porco representava também um momento muito especial de reunião da família.
A nossa era bastante extensa – o casal e sete filhos – mas havia sempre mais alguns familiares, amigos ou vizinhos que aumentavam o grupo para matar o porco.
E a matança do porco tinha o sei ritual próprio.
Vinha alguém com experiência na forma de matar o animal, sem que ele sofresse demasiado, e as outras tarefas eram distribuídas pelos restantes.
Trazido do curral, logo aí o bicho se manifestava ruidosamente, como se adivinhasse o destino que o esperava.
Já sem vida, era posto em cima de uma bancada e, se esta não existisse, improvisava-se uma com a grade de amanhar a terra.
Era chamuscado e bem raspado, para que não restassem pêlos no corpo.
A quando da morte, era logo sangrado, aproveitando-se o sangue para fazer morcelas.
O especialista que o havia morto também o abre e, com mestria, vai esquartejando de modo que todas as partes tenham o devido aproveitamento.
Há morcelas e chouriças para fazer, carne mais gorda para salgar, vísceras que hão-de ser seleccionadas para esses enchidos, febras e costeletas de consumir em grelhados e outras carnes para cozidos, para além das coxas que depois de salgadas e tratadas hão-de consumir-se como presunto.
Mas ao longo de um dia em que tudo isto se desenrola, o grupo assim reunido vai tendo sempre a companhia da jarra do vinho, que desce de nível no pipo que arrecada esse néctar, que lá na quinta era preparado com outros frutos silvestres e maçã camoesa, que lhe dava um sabor inigualável.
Assim que era aberto o porco, retirava-se uma víscera a que era dado o nome de “passarinha” que, depois de assada, justificava os primeiros copos do dia.
Entretanto, já as mulheres se encarregavam de lavar as tripas para os enchidos, porque nessa altura não havia substituto para as tripas.
A água corrente tinha o seu papel importante na lavagem das mesmas e, normalmente, um dia não chegava para serem executadas todas as tarefas relacionadas com a preparação dos enchidos.
No dia seguinte continuavam e, se necessário fosse, ainda ia para além desse dia.
A salgadeira já teria sido preparada para receber as partes que haviam de ser conservadas em sal, uma vez que não havia arcas frigoríficas que aliviassem as pessoas nesse aspecto.
A hora da refeição chegava e já com partes do porco a serem grelhadas, tratava-se da barriga das pessoas e o momento iria transformar-se numa reunião festiva, que se prolongava até ao fim do dia.
E os momentos de brincadeira iam acontecendo, com partidas aos que não conheciam o ritual, a quem era sempre dedicada a primeira morcela ou “morcela do banco”, que não era mais do que as fezes do animal, que libertava na hora da agonia.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

8. As vindimas

Na quinta, a vindima não tinha o envolvimento que tinha, por exemplo, a malha.
Mas a época das vindimas tinha um particular interesse para a garotada.
As videiras eram relativamente poucas e a produção era apenas para consumo interno.
Naturalmente que todos eram chamados a colaborar, até mesmo os mais pequenos, para acarretar as uvas para o cirandão colocado em cima de uma dorna, onde eram esmagadas com as mãos, enquanto o mosto escorria para dentro da mesma.
Seguia-se o período da fermentação, mas enquanto tal não acontecia, lá se retirava uma certa quantidade para fazer a jeropiga, que acompanharia as castanhas por altura do magusto.
Do bagaço haveria de ser feita a aguardente, que para além de ser bebida como aperitivo ou mata-bicho logo em jejum por algumas pessoas, como meu pai também fazia, era utilizada nos bolos da festa e noutros temperos.
No entanto, todas estas voltas eram dadas pelos adultos que sabiam tratar disso e que, previamente, haviam preparado as dornas e posteriormente os pipos, para onde seria transferido o vinho limpo.
Desenrolando-se outras vindimas, também à nossa volta, muitos carros de bois passavam na estrada transportando grandes dornas, com as uvas que iam entregar na adega cooperativa.
Era a oportunidade para a garotada tentar apanhar uma cavaleira até à passagem de nível da linha do comboio, embora isso implicasse vir a correr até ao sítio em que havia sido tomada a boleia.
E a cena repetia-se várias vezes, ao mesmo tempo que se ia tirando uma uva para comer no percurso.
Mas nem todos os ganhões aceitavam essa brincadeira e, mal se apercebiam da presença dos garotos nas traseiras do carro, lá vinha a vara com o seu aguilhão para nos amedrontar e correr connosco.
Só que o sabor da uva roubada de uma tina ou dorna, nunca tinha o mesmo sabor de uma uva da quinta. Era muito melhor.
A opinião era geral e por isso o divertimento daquele jogo do gato e do rato para ficarmos com uns bagos de uva.
A certa altura descobrimos o estratagema da linha de pesca e do anzol, para retirar as uvas das tinas.
Uma vara, um cordel e um gancho pendurado na ponta e colocávamo-nos por cima do muro que ladeava a estrada.
Quando o carro se aproximava o gancho era atirado e quase sempre apanhava um ou mais cachos de uva, que por vezes se estatelava na estrada, ao soltar-se do gancho.
Se o ganhão se apercebia, havia sururu, e lá tínhamos de escapar-nos o mais rápido possível, antes que os nossos pais fossem alertados e identificassem os autores da proeza.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

9. A nossa alimentação

Num tempo em que os recursos eram, no geral, muito escassos e nem sempre as formas de ganhar a vida eram consistentes ou bem remuneradas, os reflexos na própria alimentação das pessoas não deixava de se fazer sentir.
E mais ainda nos centros urbanos, onde as pessoas não tinham o recurso à horta e aos seus produtos agrícolas ou as possibilidades de uma escolha proporcionada pela criação de animais de abate, que muitas vezes eram transformados no suporte alimentar de quem, como nós, vivia numa quinta.
Tal como minha mãe dizia, havia sempre fartura de tudo o que era essencial, mesmo que pudesse ser limitada quanto a uma guloseima, sobremesa ou bolinhos, que geralmente só apareciam em dias de festa.
Também os hábitos alimentares eram diferentes dos de hoje.
E por isso ser normal que, logo como primeira refeição da manhã, surgisse um prato de sopa, um prato de batatas, um prato de feijão, fosse do grande ou do pequeno, e só depois uma caneca de café, ou melhor dito, com sabor a café pois se tratava de uma mistura de cevada na sua maior composição e porventura uma porção mínima de café.
Recordo ouvir tratá-la por chicória.
Mas o que também muito apreciava era a miga de pão com leite, o que era bastante usual, por termos na vaca a fornecedora de tal alimento.
Mas dele também por vezes se fazia manteiga, o que a tornava de características muito próprias de nossa casa, sendo o seu fabrico derivado da ajuda de muitos de nós, por ser necessário bater muito o leite coalhado até se conseguir o produto final.
As leguminosas estavam sempre presentes, tal como a massa ou o arroz, que se tornava necessário adquirir na mercearia.

A roupa (já morfológica) da nossa criação

Com os pais entregues às lides rurais exigidas por uma quinta como a nossa, as crianças ali nascidas eram criadas ao ritmo e nas condições possíveis para as circunstâncias.
Quando ainda na amamentação, estas tinham de acompanhar os pais para os campos e ali permanecer ao longo do dia, se fosse esse o período de trabalho, só regressando a casa quando os pais regressavam.
Dentro duma canasta ou de um cesto de verga, que lhes servia de berço, estes eram deslocados de sombra para sombra, ao ritmo que o trabalho impunha, estando as crianças sujeitas à picada de todo o tipo de insectos ou à visita dos mais variados animais rastejantes, que abundam pelos campos.
Poder-se-á dizer que era uma criação um pouco ao Deus-dará, mas que tinha a vantagem de criar defesas no organismo, que lhes valiam para a vida.
Quando as crianças já se movimentavam por si próprias, desde muito cedo se tornavam autónomas quanto à satisfação das suas necessidades fisiológicas, por exemplo, pois a questão do lugar nunca se levantava – todo o sítio era adequado, tudo era campo.
O problema da limpeza gerado pelo acto, também se resolvia por si mesmo - não se limpava na hora. Depois se veria …!
Era então que as mães procuravam atenuar esse problema, criando o que hoje se designa de roupa morfológica - adaptada ao corpo. E se o corpo tem aberturas, a roupa também as tinha.
Foi assim, que me lembro de usar um macacão justo ao corpo, com abertura por entre as pernas, desde o meio da barriga até atrás, ao meio das nádegas.
Se andávamos de pé esta quase não se notava, mas se nos colocávamos de cócoras, a abertura deixava-nos prontos para quaisquer necessidades. Era a funcionalidade da roupa a prevenir quaisquer acidentes.
Mas a abertura também desfazia dúvidas.
Conta o meu irmão Quim que, quando muito pequeno, a nossa mãe lhe deixou crescer o cabelo, ficando com bonitos caracóis.
Um dia estava sentado sobre o muro à beira da estrada, quando a mulher de um casal que passava, disse:- ai que linda menina !
Mas logo o homem a corrigiu, dizendo:- tu não vês que tem penderica, é um garoto !
A abertura do macacão que tinha vestido, desfez as dúvidas.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

10. A ida para a escola

O dia em que fui pela primeira vez à escola, tem permanecido sempre na minha memória.
Eu era de estatura pouco avantajada e por isso dava a impressão de ter menos idade do que aquela que realmente tinha.
Mas tendo chegado aos sete anos e tendo chegado também o dia 7 de Outubro do ano em que os completei – 1951 – lá fui a caminho da escola do parque das tílias, onde havia de completar a 4ª. Classe no fim dos quatro anos.
O dia 7 de Outubro era o dia em que começavam as aulas em todas as escolas.
Por acaso não foi o dia 7, mas sim o dia 8, pois me recordo que era dia de mercado e por isso seria segunda-feira, significando assim que o dia 7 foi domingo.
Uma sacola de pano com alça cruzada pelo ombro, tendo dentro uma lousa, uma pena, um caderno de duas linhas e um lápis, era o equipamento que me acompanhava.
No começo era o material que teria de usar mas também preservar, porque havia de servir para alguém, assim como os livros que iria usar já vinham dos meus irmãos mais velhos, que os preservaram para mim.
Quem me acompanhou no primeiro dia foi a minha irmã Anunciação, que me ensinou o caminho e me fez muitas recomendações até chegar à escola.
Chegado ali, fui entregue aos cuidados do professor, não sem que antes lhe fosse dito por minha irmã, a mando de minha mãe, que se eu me portasse mal me castigasse.
Como se isso fosse necessário, num tempo em que os professores se assumiam como educadores e por vezes carrascos, batendo sem contemplações, houvesse motivo ou não houvesse.
Não sei o que levava vestido, mas recordo que as calças tinham sido adaptadas por minha irmã ao meu tamanho.
Sei que eram castanhas e apenas chegavam ao cano das botas, ou tamancos, onde terminavam numa espécie de punho de camisa, com um botão a abotoar na respectiva casa.
Na sala fiquei perto da janela e recordo que o professor me perguntou se sabia descer e subir o estore.
Muito atrapalhado respondi que não, porque não sabia o que era um estore.
Explicou-me então que era aquela cortina de enrolar e que, puxando o fio de um lado, ela iria descer e puxando do outro, ela iria subir.
Fiz tal como ele explicou e devo ter ficado tão entusiasmado com o sobe e desce da cortina, que de repente me manda parar, dizendo que não tardava a levantar voo.
E os dias de ida à escola passaram a suceder-se uns atrás dos outros, fizesse chuva ou fizesse sol.
Quando chovia não havia guarda-chuva para nos proteger, pois aos garotos eles não eram confiados, até pelo seu tamanho e porque eram demasiado preciosos para os levarmos para a escola.
Era-nos dado então um saco de juta, que virado de forma a criar uma espécie de capuz, enfiávamos na cabeça e assim nos protegíamos.
Longos e frios Invernos aconteceram enquanto caminhei para a escola. E quando se chegava molhado, a roupa secava no corpo, porque o aquecimento não era suficiente para nos secar.
Quando o frio era muito, algumas vezes levei um tijolo aquecido no lume em casa, que depois de embrulhado num jornal colocávamos debaixo dos pés para os aquecer.
A estrada para a vila não era alcatroada na altura, tornando-se num verdadeiro lamaçal, quando chovia muito.
Num desses Invernos muito chuvosos aconteceu uma enchente na ribeira de Alverca, que a fez transbordar por cima da ponte, o que impediu a nossa passagem e a ida à escola.
Mas também a neve nos visitava frequentemente, o que dava para animar os recreios na escola, proporcionando grandes batalhas com as bolas de neve.
Desse tempo sobra também uma dolorosa recordação. A de ter esbarrado num poste de ferro, que suportava os fios da electricidade, colocado no passeio junto à parede.
De tal modo, que houve necessidade de ser levado ao hospital para ser suturado a um enorme golpe que me provocou na testa.
Foi na Rua Aurélio Pinto, junto ao portão do Zé da Vaca, que desviei o olhar para a minha direita, observando um grupo de pessoas que estava junto à casa mortuária, que o acidente aconteceu. Houve distracção da minha parte … mas o poste podia ter-se desviado !!!
Sem discutir se estava ou não correcto o método, a verdade é que o ensino que então era ministrado pouco tinha a ver com o que é dado actualmente, pois a verdade é que em quatro anos se adquiria um conhecimento que hoje não se encontra em alunos com o dobro do tempo de aprendizagem.
Quando completei o ensino primário, fazendo o exame da 4ª.classe com aprovação, houve da parte dos meus familiares uma pequena recompensa em dinheiro. Deram-me 20$00 !
Como estava perto a fábrica dos pirolitos, foi aí que fui gastar com os amigos, essa autêntica fortuna.
Todo o dinheiro gasto em pirolitos !
E se eram gostosos os pirolitos, com aquele berlinde lá dentro, que nos parecia impossível ser tirado pelo gargalo.
O que nos causava uma grande pena !

10a. Casamento por procuração

Já o referi anteriormente, houve uma boda de casamento na nossa quinta. A da irmã Fernanda.
O namorado fora para Moçambique ao serviço duma força policial e passado tempo decidiram casar-se, para ela ir ter com ele, depois.

Os momentos de namoro

Aconteceu então o chamado casamento por procuração.
O noivo fez-se representar por alguém, a quem passou procuração para o fazer, que levou a noiva à igreja para a cerimónia religiosa.
E quem representou o noivo nessa cerimónia foi o nosso irmão Ernesto.
Mesmo sem noivo, houve boda de casamento. Caseira e só com a família mais chegada, de uma parte e de outra.
Mas um casamento exige boda e essa não deixou de ser feita.

Fotografia a lembrar que houve um casamento - no lugar do noivo o irmão

10b - A cadeira eléctrica nas diversões de feira

Por altura das feiras, que no Fundão aconteciam nos meses de Abril e Outubro, nos dias precedentes começava a instalar-se nos espaços à sua volta todo o tipo de diversões.
Por lá apareciam o carrossel, circo, poço da morte, barracas de tiro, barracas de come-e-bebe, bancas de manipuladores do copo com os dados, mesas de cartas ou ainda os que mostravam a sua força lançando o mini foguetão pela rampa para fazer percutir o estalinho ao bater no topo, até aos da pancada com o martelo que projectava o peso que iria tocar a campainha no alto da coluna, etc.etc.
Sendo que estas feiras tivessem como objectivo a comercialização de produtos agrícolas ou de gado por parte de produtores e criadores, para os mais jovens só as atracções interessavam.
E sendo os tempos de recursos muito limitados, procurava-se amealhar ao longo do ano para que na altura houvesse algo para gastar.
Embora nos tempos actuais se mantenha no Fundão a calendarização destas feiras, o seu figurino modificou-se radicalmente.
Não mais houve venda de gados, as produções agrícolas foram definhando e as atracções, tal como existiam, não mais se viram.
Mas havia uma atracção, que aqui recordo, que me deixava muito intrigado e no princípio até algo perturbado – a cadeira eléctrica.
Lembro-me que, da primeira vez, a tenda se encontrava instalada no largo onde actualmente se encontra a Auto Transportes do Fundão.
Não posso precisar qual a idade que tinha, mas sei que era bastante pequeno e que fui com um irmão mais velho, porque sozinho não me atrevia a ir lá para dentro.
No exterior e sobre um palco instalado na frente, a propaganda para o espectáculo era feita por um indivíduo que trajava de fraque e cartola e através de uma espécie de funil ia falando e dramatizando o espectáculo com a “morte” de uma pessoa que seria electrocutada na cadeira eléctrica.
Para além da propaganda, também fazia de bailarino que dançava com uma boneca presa na ponta dos seus sapatos.
Era, pois, com grande expectativa que entrávamos na tenda, para assistir à “morte de alguém” na cadeira eléctrica.
Aí, o apresentador fazia a demonstração de que nos fios ligados ao capacete e aos braços da cadeira havia electricidade, fazendo acender uma lâmpada quando puxava a alavanca do quadro eléctrico, ao mesmo tempo que fazia rebentar um fusível que também era colocado sobre o capacete.
Com este clima, uma pessoa era sentada na cadeira, o capacete amarrado na cabeça, as pernas e os punhos presos à cadeira com grandes correias de cabedal e todas as luzes se apagavam, à excepção de uma pequena projecção sobre a pessoa sentada na cadeira.
Dirigia-se então à alavanca do quadro eléctrico e, puxando-a, estabelecia o circuito eléctrico que provocava um verdadeiro fogo de artifício à volta da pessoa.
Quando os nossos olhos recuperavam da luz provocada por esse fogo de artifício, víamos então que um esqueleto se encontrava sentado na cadeira, ainda com o capacete e os braços e pernas amarrados à cadeira.
Os espectáculos iam sucedendo dia após dia, com “execuções” atrás de “execuções”, mas apesar da série de “mortes” na cadeira eléctrica, nunca se viram funerais ou foram presos os que “matavam” tanta gente, enquanto durava a feira.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

11. A sesta

Não tendo já a noção exacta de como eram as temperaturas na altura, do que não resta dúvida é que as quatro estações do ano se identificavam perfeitamente no seu momento próprio.
E havia um hábito que no verão a nossa mãe procurava fazer cumprir com rigor, enquanto pequenos – dormir a sesta.
Porém, nem sempre isso era cumprido, quando o sono demorava a chegar.
Antes de ocupar a cama para a presumível sesta, deixava-se uma porta destrancada para não haver barulho no momento da escapadela.
Aguardava-se que o sossego tomasse conta da casa, o que significava que todos estariam a dormir e procurava-se a forma de ocupar o tempo fora de casa.
Numa dessas escapadelas e com um calor abrasador, dirigi-me através dos regos do trigo até à ribeira, ao fundo da quinta.
Ao passar junto a uma velha oliveira na ponta do cômoro do meio, oiço um pequeno silvo ou assobio, como se do alto da oliveira alguém me chamasse.
Levanto a cabeça para cima e quase ia morrendo de terror, quando ao nível da cara deparo com uma grande cobra dependurada da oliveira, com a sua cabeça mesmo à frente dos meus olhos.
Numa gritaria, que deitou por terra a artimanha para não fazer a sesta, corri para casa a comunicar o caso e a pedir socorro.
No trajecto fui caindo e esfolando os joelhos, precisamente no sítio onde algumas verrugas foram sendo limpas com a esfoladela que a queda tinha provocado.
Dizia-se que das verrugas não podia haver derramamento de sangue, pois iriam gerar mais verrugas, mas a verdade é que aquelas foram limpas e no sítio não surgiram outras.
De casa veio então um irmão mais velho com um podão encabado num forte varapau, porque eu dizia que a cobra era muito grande, mas a verdade é que não mais se viu tal bicho.
Resultou então um grande ralhete da mãe, por ter ficado a saber da fuga à sesta, e o aperto das medidas de segurança para que a situação não voltasse a repetir-se.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

12. Vamos aos ninhos ?

Por diversas vezes este convite foi feito e por muitas vezes foi por mim aceite, sem quaisquer consequências.
Mas quando naquele domingo os meus companheiros vieram dizer que iam aos ninhos e me convidaram para ir com eles, eu devia ter recusado.
Mas não recusei e fui, sabendo o compromisso que tinha.
Chegada a hora da catequese, não apareci em casa e depressa fui procurado por um irmão para que fosse junto da mãe.
Como é natural, não me livrei de uma valente sova e aprendi a lição para o domingo seguinte.
A partir daí e para que não houvesse dúvidas quanto à ida à catequese e à missa, quando chegava a casa teria de dizer o nome do celebrante, a cor dos paramentos, a homilia e não sei que mais.
Da inconsciência da garotada resultavam esses comportamentos para com seres que não faziam qualquer mal aos humanos.
Mas retirar ovos ou alguns pássaros acabados de nascer, aconteceu comigo próprio e não sei se alguma vez fiz o gesto de me opor a que se fizesse.
Correndo o risco de cair, trepávamos pelas árvores acima e depois era o divertimento para atingir com os ovos os que ficavam por baixo.
Quando já crescidas, algumas espécies de pássaros eram levadas e metidas em gaiolas, tal acontecendo com as aves canoras, como pintassilgos e rouxinóis.
Até os melros serviam para serem engaiolados e, enquanto pequenos, a gaiola era deixada perto do local do ninho, de modo que os pais continuavam a alimentá-los.
Mas não raro nos dávamos conta de que os melros morriam dentro da gaiola.
Tal acontecia na fase em que os pais tentavam que os filhos os acompanhassem nos primeiros voos.
Como não conseguiam tirá-los dali, davam-lhes bagas venenosas que os matavam.
Se na altura não nos era dado compreender a mensagem, ela é bem clara.
É que sem liberdade é preferível morrer e, neste caso, os próprios pais se encarregavam de o pôr em prática.
Minha mãe sempre foi extremamente religiosa e os filhos tinham de seguir todos os passos próprios de um bom cristão.
Não posso mal dizer, pois, ter apanhado aquele castigo.

Pega (quase) de cernelha

A Quinta do Olival Grande, do outro lado da estrada em frente ao Chão de Alverca, era muito maior do que a nossa quinta.
Mas tinha mais ou menos as mesmas características agrícolas. Só que em maiores quantidades. Quanto a vacas, por exemplo, recordo que havia muitas, embora não saiba quantificá-las.
Enquanto nós tratávamos da quinta pelos nossos próprios meios, eles recorriam a pessoas que trabalhavam à jorna para outros. Tinham, até, uma pessoa a trabalhar a tempo inteiro.
Era o que então se designava de criado, que lá vivia, em regime de disponibilidade as vinte e quatro horas do dia, cuidando essencialmente dos “vivos”, englobando aqui os animais, mas também as árvores, plantações, sementeiras e hortas, que careciam de uma atenção permanente, face à necessidade de serem acomodados, regadas, podadas e colhidas.
Embora muita gente não tenha noção da exigência colocada pela agricultura, importa lembrar que o ciclo de vida de cada uma destas espécies determina cuidados diários, em todos os dias do ano.
Qualquer um dos “vivos” necessita comer todos os dias. Vacas, porcos, cabras, ovelhas, coelhos, galinhas, cães, são alguns desses “vivos”.
Mas as vacas, as cabras e as ovelhas também necessitam ser ordenhadas todos os dias, quando estão em período de aleitação.
E para dar de comer às vacas, por exemplo, é necessário cortar forragem todos os dias, ou então acautelar um dia ou outro, como são os domingos, cortando a forragem de véspera.
Outros terão de ser postos no pasto, como cabras e ovelhas, mas com as devidas precauções, pois não podem ficar à solta.
No Chão de Alverca o compromisso de tratar dos “vivos” era de todos.
E os mais novos sabiam bem que, aos domingos, só podiam ir para a “moina” ou para a “vadiagem”, como às vezes ouvia a meus pais, de uma forma muito depreciativa, quando tivessem cumprido as obrigações para com as tarefas da quinta.
Entretanto, eram frequentes os incidentes com os “vivos”. Ou porque se soltavam e davam cabo da horta, ou porque fugiam dos capoeiros e era preciso fazê-los recolher, ou porque invadiam a propriedade dos vizinhos, onde causavam prejuízo, ou ainda porque devoravam as crias, comiam os ovos, etc. .
Aconteceu na nossa quinta, mas também aconteceu na Quinta do Olival Grande – um dia, uma vaca fugiu !
Da fuga da vaca no Chão de Alverca, só me lembro de ouvir falar, mas na do Olival Grande aí fui um dos intervenientes no episódio da tentativa de a fazer recolher ao estábulo.
Veio para a estrada e alguém começou a gritar por ajuda.
Também acorri e, juntamente com outros vizinhos, tentei que a vaca retomasse o caminho da quinta, mas ainda era preciso prendê-la.
Foi então que corri atrás da vaca e segurei-a pelo rabo, sendo rebocado por ela, com os pés a escorregar sobre a terra do caminho, como se estivesse a esquiar.
De tanto correr, levando-me a reboque, a vaca acabou por cansar-se e parar, permitindo que alguém lhe atasse uma corda ao pescoço e a levasse para o estábulo.
A intenção foi imobilizar a vaca e isso foi conseguido.
Fiz, então, o papel de rabejador, só faltando no lado da vaca o cernelheiro, a segurar, para que tivesse sido uma verdadeira “pega de cernelha”.

12a. A briga com as abelhas

Quem vive em lugares rurais conhece, sobejamente, os diversos tipos de abelhas que abundam pelos campos. Umas mais perigosas que outras.
Nessas mais perigosas se inclui também certos tipos de vespas, que se instalam em buracos de paredes ou buracos subterrâneos, sendo uma armadilha bastante perigosa para quem amanha as terras e não se apercebe da sua presença.
No tempo, todo o trabalho se fazia com charruas puxadas por animais, e quando esses equipamentos agrícolas destruíam os vespeiros, não só as pessoas como os animais, eram atacados pelas vespas.
Acontecia então que os animais desatavam em correrias loucas, levando consigo as charruas que puxavam, provocando por vezes graves acidentes.
Havia, por isso, que tomar providências para evitar esses acidentes, o que se fazia de noite, enchendo os buracos com muita água e amassando toda a terra em volta, para que as vespas ali ficassem enterradas. Normalmente, conseguia-se eliminar essa ameaça.
Nas paredes procurava-se encher o buraco com qualquer produto combustível, como o petróleo e, tomadas as precauções necessárias, chegava-se-lhe o fogo e o resultado era também eficaz.
Mas para os garotos, como eu era na altura, as vespas transformavam-se em divertimento, mesmo à custa de algumas picadas.
Protegiam-se as pernas, atando cordéis ao fundo das calças, para que elas não se infiltrassem pelas pernas acima, o mesmo se fazendo nos braços.
Para protecção da cabeça enfiava-se um saco de plástico, que depois era bem amarrado no pescoço.
O problema era a respiração, porque rapidamente o saco começava a ficar embaciado e logo a seguir começavam as tonturas, se não íamos respirar para longe do vespeiro.
Por vezes os limites eram ultrapassados e aconteciam então situações de maior gravidade.
Foi o caso de um dia o Quim da Vizinha me ir chamar, para atacar um vespeiro numa parede detrás da sua casa.
Como havia por lá uns sacos maiores, que tinham servido para transportar adubo ou fertilizante das terras, usámo-los para nos proteger da cabeça aos pés.
Mas o resultado foi desastroso.
O primeiro a ficar protegido foi o Quim, mas também foi o primeiro a cair inanimado por ter respirado dentro do saco, o que lhe terá provocado intoxicação.
Tirei rapidamente o saco e comecei a bater-lhe na cara e a sacudi-lo, mas só acordou quando lhe despejei em cima um balde de água.
Não chegámos a atacar as vespas, mas fomos vencidos pela imprudência.
E a lição não mais foi esquecida.
Para o meu irmão Quim, que também era muito atrevido com as abelhas, aconteceu outro problema.
Um dia foi picado nas sobrancelhas e houve logo um companheiro que lhe disse que podia evitar o inchaço, abrindo um tomate e colocá-lo sobre o sítio das picadas.
Uma desgraça. O ácido do tomate entrou nos olhos e foi vê-lo a gritar e a dizer que tinha ficado cego.
Não ficou, felizmente, mas à noite o inchaço era tal que não conseguia mesmo abrir os olhos. Eram assim as nossas brigas com as abelhas.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

13. Os nossos brinquedos

Não foi fácil ter o meu primeiro brinquedo vindo de uma fábrica, onde outras pessoas os faziam para meninos que os podiam comprar.
Era um carro já moldado em chapa, e até matrícula tinha.
Mas não foi comprado, porque o dinheiro de meus pais não era esbanjado com brinquedos deste tipo.
Dando para comer e para comprar o essencial, já era bom.
Mas como a imaginação não nos faltava, também as brincadeiras não deixavam de existir por falta de brinquedos, porque na verdade todos os brinquedos se podiam inventar.
E nós inventámos muitos.
Desde as debulhadeiras com carretos dentados, feitos dos carrinhos de linhas utilizados pelas minhas irmãs na confecção de peças de costura, até aos carros e às trotinetas feitas de rolamentos de esferas, tudo fazia parte do nosso engenho para construir brinquedos.
De tal forma eram cobiçados, que por vezes nos propunham trocas por esses outros feitos em fábrica.
Foi assim que dum conjunto de carros de linha metidos num arame com pegadeira, dispostos uns sobre os outros e com diversas voltas e reviravoltas para o tornar mais invulgar na sua forma, veio a troca para o tal carro moldado em chapa e com matrícula.
E então sim, passei a ter um brinquedo de gente rica.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

13a. Os nossos brinquedos (2)

Já escrevi sobre os nossos brinquedos no Chão de Alverca e da nossa capacidade para os inventarmos.
Quando um pouco mais crescido e capaz de manusear algumas ferramentas de meu pai, entreguei-me à construção da tal “lambreta”, que hoje se assemelharia a uma “trotinette”.
As rodas eram rolamentos já retirados das suas funções normais, que procurávamos nas oficinas onde eles fossem jogados no lixo, e o guiador era adaptado através de um furo na parte da frente da tábua base.
Só que os rolamentos não tinham a aderência necessária e então tive de fazer rodas em madeira, que depois forrava com uma tira de borracha de qualquer câmara-de-ar já inutilizada.
O modelo foi sendo melhorado e a dado momento já tinha um pequeno assento almofadado, com forro de tecido sobre pedaços das folhas de milho seco, que então eram usadas nos colchões ou enxergas de cama.
Tal assento acabava por ser uma caixa que podia transportar outros brinquedos ou pequenos utensílios.
Todavia, o assento só era utilizado quando a “máquina” já tinha ganho alguma velocidade ou então alguém nos empurrava nas costas, pois sentados não tínhamos hipóteses de ganhar balanço para andar.
Também o guiador, nessa fase era muito baixo.
A evolução vai-se processando e, tanto o guiador como o assento, foram alteados, havendo então a possibilidade de ter um pé na base e, com o outro no chão, fazermos a projecção para a frente.
Com a minha “máquina” vinha então para junto da passagem de nível da CP na estrada de Valverde e aí, aproveitando a inclinação da estrada, conseguia andar numa extensão bastante grande.
E a cena repetia-se vezes sem conta, trazendo o “veículo” para o cimo da rampa, dali lhe dando o impulso possível para fazer a descida a toda a velocidade.
Felizmente que na altura não havia o trânsito que há hoje naquela estrada, se não, o acidente seria certo.
A minha “lambreta” passou a ser, então, um veículo muito admirado e a presença de muitos outros garotos era normal, quando eu vinha fazer a descida da passagem de nível.
A tal ponto, que passou a ser também cobiçada, surgindo então algumas propostas de compra, para além de uma proposta de troca por um carro metálico de pedais.
Era vermelho e também me encantou o suficiente para a troca se efectuar. Recordo perfeitamente o nome do seu dono, já falecido há muito – Roque Salvado António.
O carro não era para grandes velocidades, mas era um carro que até tinha emblema e tinha sido feito numa fábrica a sério.
Ora, um brinquedo de fabrico industrial, não era para todos os meninos da época.
Nesse aspecto passei a ser privilegiado.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

14. A minha comunhão solene

Já foi dito que minha mãe era muito religiosa.
Podia confundir crença com crendices, mas o caminho da igreja era para ser percorrido pelos filhos, como ela o percorria.
Todos passámos pela catequese, fizemos a primeira comunhão e finalmente a comunhão solene e crisma.
Da primeira comunhão já não consigo lembrar os pormenores.

Exibindo o tradicional laço no braço, com o meu amigo Armando

Do crisma recordo a vinda do Bispo e o convite que fiz ao que viria a ser também meu cunhado, para que fosse meu padrinho, apanhando de surpresa a minha irmã, que então o namorava.
Da comunhão solene já tenho uma ideia mais clara, até por aquilo que aconteceu nesse dia, e guardo ainda o diploma que era passado a todos os que recebiam tal sacramento, para além de uma fotografia com o tradicional laço no braço.
Minha mãe encontrava-se nas termas e foi a irmã mais velha que tratou de tudo para que eu fizesse a comunhão solene, numa missa campal que foi celebrada num largo ao fundo da avenida, que então andava a ser construída.
Era Quinta-feira de Ascensão.
Foi também a minha irmã que me fez um conjunto de casaco e calção muito bonito, para eu levar para a cerimónia.
Na altura, para se poder comungar tínhamos de estar em jejum natural desde a meia-noite até à hora da comunhão.
Tratando-se de uma missa festiva e numa cerimónia ao ar livre, a sua celebração demorou mais de duas horas.
Tanto pelo calor que se fazia sentir, como pela fraqueza devido ao jejum que era imposto, muita gente ia desmaiando, tal como aconteceu comigo.
Levaram-me para casa de uma senhora conhecida e lá me deram água para recuperar, de modo a continuar sem ingerir sólidos e poder então comungar.
Cumpriu-se assim a comunhão solene.
Mas o casaco que vesti nesse dia havia de passar por uma “macacada”, que lhe valeu um dos bolsos.
Foi num dos domingos seguintes, quando saí da missa e estavam acampados na vila do Fundão uns saltimbancos que traziam alguns animais, com os quais trabalhavam para ganhar o seu sustento.
Claro que o macaco era a maior atracção para a garotada e, se lhe davam amendoins, ele até vinha tirá-los das nossas mãos.
Eu também levava amendoins e deixei que o macaco os tirasse do bolso do casaco, ficando eu muito feliz pela relação que estava a ter com o macaco.
Só que no momento em que ele tinha a pata dentro do meu bolso, um outro garoto dá-me um empurrão nas costas.
O macaco assusta-se e retira a pata com força, levando não só os amendoins mas também o bolso, que rasgou do casaco.
Foi uma grande aflição até chegar a casa e saber quais as consequências, mas a minha irmã lá resolveu o problema, porque ainda tinha do mesmo tecido. Como o bolso era cosido pelo exterior, facilitou as coisas.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

15. Uma volta de bicicleta mal sucedida

Aprendi a andar de bicicleta no Largo de Santo António, na vila, à custa de uns tostões que por vezes me davam.
Custava 50 centavos uma volta de cinco minutos, nas bicicletas que havia para alugar no sr. Guilherme.
Se bem que nas primeiras pedaladas era sempre a direito e nem as árvores se desviavam, se ia na sua direcção, aos poucos lá consegui andar, dar curvas e ganhar experiência.
E até já conseguia andar nas bicicletas grandes, como uma que o meu irmão Ernesto tinha, metendo a perna para o pedal direito através do quadro, pois não tinha altura para me sentar no selim.
Claro que a bicicleta do meu irmão, tipo de corrida, não podia ser para eu andar, pois ela era como se fosse um tesouro para ele, e com alguma razão, uma vez que lhe tinha custado muito a comprar.
Nessa altura o meu irmão trabalhava na oficina do Reis Miguel, então situada no Largo de S. Francisco perto da minha escola, a dos garotos, pois havendo separação de sexos entre alunos da primária, a das garotas era afastada dali, ficando perto do largo do mercado.
A bicicleta era por isso o seu meio de transporte, tanto para o trabalho como para os seus passeios.
Aconteceu que um dia à hora do almoço, enquanto ele comia, me atrevi a pegar na bicicleta e ir dar uma volta na estrada, que já era alcatroada.
Ao passar em frente do portão da vizinha sai de lá a correr uma das filhas, que veio a empurrar-me no selim.
Eu bem gritei para me largar mas já não foi a tempo de evitar que me desequilibrasse, caísse sobre a bicicleta e torcesse o guiador, rasgando uma fita plástica que o forrava.
Também a roda ficou ligeiramente empenada e os travões um pouco torcidos.
Lá endireitei o guiador como pude e procurei colar de novo a fita tentando disfarçar os sinais da queda, porque sabia que não me livrava de uns açoites se o meu irmão descobrisse que tinha causado aqueles estragos à sua querida bicicleta.
A verdade é que o meu irmão acaba de almoçar, monta na bicicleta e lá foi para o trabalho.
Quando ao fim do dia regressou vinha muito furioso e percebi logo porquê, mas as culpas eram atiradas para os garotos da escola que tinham lá andado à volta da bicicleta e a teriam feito cair, causando tais estragos.
Bem caladinho, lá me safei de um castigo, que até seria merecido.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

16. Negrito, olha o milhano !

A existência de galináceos na quinta, pressupunha, como é óbvio, a sua formação a partir do ovo.
Para isso, tinham de chocar-se os ovos, o que acontecia de forma natural, quando alguma galinha dava sinais de querer chocar.
Seleccionados os ovos de galinhas que se sabia terem sido galadas ou, mesmo desconhecendo esse facto, analisados por gente experiente que detectava nos ovos os sinais de serem ou não galados, arranjava-se o ninho e aí se colocava a galinha sobre eles.
Nem sempre todos os ovos eram de galinha, pois muitas vezes se aproveitava esta para chocar também ovos de pato ou marreco, como os designávamos, visto ser mais difícil ter patas a chocar apenas os seus ovos.
Quando a criação aparecia, as espécies separavam-se naturalmente, porque os marrecos logo se encaminhava para a água do tanque, ainda que a alimentação fosse comum.
Surgia depois a preocupação de os proteger enquanto pequenos, porque em qualquer quinta que tivesse criação de galinhas era certo e sabido que o milhafre rondava e lá ia conseguindo apanhar algum pintainho.
Muitas vezes os vimos a baloiçar nas garras da ave de rapina, mas já nada se podia fazer.
Só a prevenção ia evitando as investidas do milhano e para tal contávamos com a ajuda dum cão chamado “negrito”, devido à sua cor negra, que ao detectar a presença duma ave de rapina já não parava de correr de um lado para o outro à volta dos pintos até os fazer regressar a sítio seguro.
Se a não detectava por si próprio, bastava gritar-lhe: negrito olha o milhano, e já não parava.
A correr de focinho no ar, seguindo a trajectória da ave de rapina, chegava a entrar pela casa dentro e esbarrar com obstáculos ou móveis que derrubava e até danificava.
Acompanhar o ciclo de vida de um simples galináceo, tem aspectos verdadeiramente espantosos.
Tal como acontece com qualquer ser vivo, pode ser acometido das mais diversas moléstias, algumas caracterizadas por aspectos intrigantes.
Num certo ano aconteceu, não só na nossa quinta mas também na dos vizinhos, que os pintos morriam depois de assumir uma posição quase vertical como a dos pinguins e a seguir tombavam fulminados.
Bastava que ao nível do papo surgisse algum pequeno obstáculo que obrigasse a um ligeiro esforço para o ultrapassar, assumiam então a posição vertical, ficavam hirtos e pouco depois caíam mortos.
No entanto, para a garotada era uma grande diversão, pelo facto de se transformarem em "pintos-homenzinhos".
Divertido, mas dramático.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

17. Crendices - a boa ou a má hora ou o medo das encruzilhadas

Histórias, muitas histórias se contavam ao serão, à volta da lareira.
Era a forma de consumir as horas, enquanto não chegava o momento de o sono nos chamar para a travessia das longas noites de um tempo sem motivos para estar acordado.
Nem a música nos aparecia em casa, já arranjada noutros lugares ou estúdios. A que se consumia era a que saía das gaitas de beiços ou do harmónio que em tempos mais recuados o meu pai manuseava de forma algo incipiente.
E só esses ingredientes musicais poderiam fazer com que o serão fosse alongado na noite.
Mas as lanternas e as candeias consumiam petróleo ou azeite e esses produtos também não podiam esbanjar-se.
Quanto a música vinda pelas ondas hertzianas, posso dizer que houve um tempo em que também passou a existir na minha juventude – quando consegui montar uma galena, segundo um esquema que acompanhava o conjunto das suas peças, que troquei por uma maquineta de afiar lâminas de barbear, que na altura ainda não precisava, adquirida a prestações numa casa de ferragens.
Mas o som, não amplificado, só no profundo silêncio da noite se conseguia ouvir nos seus auscultadores, graças a uma antena de mais de 100 metros.
Era, pois, num ambiente destes que as histórias fantásticas surgiam, contadas pelos mais velhos.
E o imaginário desse tempo era muito fértil em crendices, lendas, bruxarias, benzelhões e todo o tipo de loas ao gosto de qualquer um, que mais não serviam do que justificar o que pareciam ser coisas do outro mundo.
Em noites de lua cheia havia de ser lembrado o lobisomem, como em noites de escuridão havia de ser lembrada a boa ou a má hora, a primeira vestida de branco e a segunda vestida de negro.
Essencial era evitar as encruzilhadas à meia noite, pois o risco de ter um mau encontro ou uma assombração eram grandes.
Coisas tão banais e bem justificadas nos dias de hoje, como uma donzela ser recolhida sem quaisquer vestes numa noite escura, eram logo tidas como bruxarias.
Recordo o que se contava sobre o lugar ainda hoje existente e onde passo quase todos os dias, conhecido por Cruz de São Marcos, onde um grande senhor da época, montando o seu cavalo, encontrou em noite de grande frio uma jovem toda despida, a quem teve de ceder o seu capote para a agasalhar.
- Como foi parar a jovem junto à cruz naquele estado? Só podia ser coisa do diabo ... !

Vizinho da Lavadeira de Alverca (a da lenda)

Vivendo junto à Ribeira de Alverca, era na ribeira que aconteciam muitas das nossas brincadeiras.
Era ali que estavam muitos dos poços em que nadávamos, começando por aprender a boiar com os pedaços de cortiça atados ao peito, até já sermos capaz dos grandes mergulhos de cima das pedras para os poços, mas também com a capacidade de evitar alguns pedregulhos ali existentes, que poderiam causar graves danos nas nossas cabeças, se lá fôssemos bater.
Mesmo assim, alguns acidentes aconteceram.
Mas também na ribeira e bem perto do Chão de Alverca estava a ponte romana.
E perto desta, o charco onde havia uma grande quantidade de lavadouros, sempre ocupados pelas muitas lavadeiras que todos os dias para lá se deslocavam, na sua maioria vindas da vila do Fundão. Lavavam a sua roupa, mas também lavavam a de outras pessoas, fazendo disso uma ocupação, para ganhar dinheiro.
Naturalmente, que a lenda da lavadeira de Alverca não nos era indiferente, até porque minha mãe não a deixava cair no esquecimento.
Era a lenda da Quinta do Ouro, como era a da Lavadeira de Alverca, que se misturavam com o quadro da semana santa – por exemplo o domingo de Ramos – em que nenhum vegetal ou verdura eram consumidos na confecção das refeições, sendo as sopas feitas simplesmente de arroz, cebola e batata cortada aos cubos, para além de alguns temperos.
Contadas aos serões de inverno, as lendas adquiriam para nós foros de verdade, até porque no caso de Quinta-Feira de Ascensão, ainda era (ou já fora) dia santo de guarda, não se trabalhando, e mesmo as lides caseiras paravam quando chegava a uma hora da tarde, em que o sino da igreja tocava, e todos rezávamos as orações próprias do momento, que minha mãe bem conhecia.
O que se dizia de Quinta-Feira de Ascensão tinha o seu expoente máximo no ditado “se os passarinhos soubessem o que era Quinta-feira de Ascensão, não comiam nem bebiam, nem punham as patinhas no chão”.
E tudo tinha a ver com essa lavadeira que não respeitou o preceito sagrado de não trabalhar nessa hora, que se dizia ser aquela em que Nosso Senhor subiu aos céus, ao mesmo tempo que deveria rezar onde quer que se encontrasse. Mas, apesar de avisada, não o fez.
Ela encontrava-se, nesse espaço de tempo, a bater a roupa nos lavadouros da ribeira de Alverca, perto da ponte romana, e foi dali que sumiu com todos os seus pertences.
A partir de então, à uma hora da tarde de todas as Quintas-Feiras de Ascensão, ouvia-se o choro da lavadeira e o bater da roupa nos lavadouros da ribeira.
Isto era o que a lenda dizia.
À distância no tempo, procuro lembrar-me, mas não consigo, se alguma vez questionei os mais velhos sobre se tinham ido certificar-se do batimento nos lavadouros da ribeira, àquela hora de Quinta-Feira de Ascensão.
Porque eu posso garantir que nunca os ouvi.
E a razão é simples: nunca tive a coragem de ir à uma hora da tarde de Quinta-Feira de Ascensão, até junto dos lavadouros da ribeira.
Ali bem perto do Chão de Alverca.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

18. Lições de vida

Ter nascido e ser criado num espaço campesino como era este, também situado relativamente perto da urbe, a então vila do Fundão, pode dizer-se que foi um privilégio.
A participação e acompanhamento dos ciclos de vida da natureza, nos seus mais pequenos aspectos, é uma experiência que nos enriquece e molda de tal forma, que as suas marcas não mais vão desaparecer.
Não foi fácil dar uma cronologia a muitos dos factos relatados, contudo a separação dos momentos de criança à guarda dos pais ou de irmãos mais velhos, sempre preocupados com as traquinices que poderiam redundar em acidentes, de outros momentos em que agimos com mais independência, como aquele que nos leva à escola pela primeira vez, é perfeitamente perceptível no arquivo que é a nossa memória.
De criança bastante pequena, sobra uma recordação fisicamente muito dolorosa, quando me preparava para entrar em casa.
Tropeço numa das pedras da calçada à portuguesa, que havia em frente da porta, e vou de cabeça contra o degrau que ali existia.
Era dia de mercado, os pais não estavam, e eu encontrava-me à guarda de uma irmã mais velha, a qual numa aflição indescritível corre comigo ao colo para casa da vizinha a pedir socorro e tentar estancar a sangria que o golpe na testa havia provocado.
Num dos regatos onde a água corria, lavaram a ferida, puseram açúcar branco, mercurocromo, sulfamidas e não sei que mais, com tiras de pano fizeram compressas que enrolaram à volta da cabeça, até que o sangue estancou.
Era um sítio de má memória para mim, porque a cena havia de repetir-se uma vez mais, pelo menos, tempos depois.
Mas as recordações não tiveram apenas a ver com factos palpáveis ou mais ligados ao aspecto material, porque a morte dramática da filha da vizinha, atropelada em cima da ponte, numa altura em que preparava o seu futuro, deslocando-se para a aprendizagem aos bordados, deixou-nos deveras contundidos emocionalmente.
Já foi dito que nestas pequenas quintas a relação com os vizinhos era quase a mesma, ou melhor ainda, do que a que se tinha com a família. E tudo o que de bom ou de mau acontecia era sempre partilhado de igual forma.
A solidariedade era um valor que estava sempre presente nas relações de vizinhança.
Por isso a tragédia que atingiu os vizinhos foi mesmo um momento de grande sofrimento para todos.
Nesses ciclos de vida - não eu porque fui o último dos sete irmãos a nascer - os mais velhos tiveram a oportunidade de assistir a partos de gente e de muitos animais.
Porque nesses tempos, ainda quase todas as crianças nasciam em casa com a ajuda de parteiras.
Era então muito popular o nome da senhora Celeste, uma parteira que sei ter também ajudado ao meu nascimento.
Mas do acto de parir, sobram-me as recordações dos que ocorreram com vacas, cabras, ovelhas, coelhos e cães.
E como tudo o que é pequeno tem graça, sempre que havia bezerrinhos, cabritos, carneiros e outros, a garotada estava sempre disposta a acomodá-los e divertir-se com as suas próprias brincadeiras.
Quando os cabritos já acompanhavam a mãe para o pasto, as suas brincadeiras eram inigualáveis.
Formavam filas e corriam em pinotes com as quatro patas juntas, jogavam às escondidas e todos nós os provocávamos nessas brincadeiras.
Até combates fazia entre si, exercitando-se para quando fossem grandes e disputassem alguma fêmea.
Quando se lhe dava um miolo de pão, vinham comê-lo à mão e isso era sempre um gesto muito apreciado por nós.
Mas havia também quem lhes pregasse partidas, como aquelas do irmão António, para nós simplesmente o Tó, que lhes metia pedaços de malagueta no pão, deixando-os a soprar e espirrar, enquanto ele gozava perdidamente, rindo-se a bandeiras despregadas.
Eu já teria cerca de dez anos quando a estrada nacional foi alcatroada.
Até então era uma estrada de terra batida, que em tempos de chuva ficava quase intransitável.
Após chover formavam-se pequenos charcos e se acontecia deslocar-nos por ela durante a noite, mesmo com luar, esses charcos a que chamávamos “braseiras”, eram confundidos com terreno limpo, ao reflectirem o firmamento.
Por isso era fácil metermos o pé na poça e as botas, tamancos ou sapatos, lá ficavam completamente encharcados.
A permissão de vir à noite à vila não era fácil de conseguir, enquanto criança.
Quando passou a acontecer, os pais sabiam perfeitamente onde íamos e com quem íamos.
Não consigo lembrar-me de quantos anos teria, porém já andava na escola havia bastante tempo.
Fui com um dos meus irmãos ver um teatro ambulante, cujos cenários iam mudando à medida que a peça se desenrolava.
Tinha a ver com a história de Portugal e foi um momento de tal modo marcante, que julgo ter passado para a própria génese. Sempre gostei de teatro.
Na época, qualquer carro de bois ou animal tinha de ter a sua licença, embora o dinheiro nem sempre fosse de tal monta que a gente rural tivesse meios para tirar essas licenças.
Uma vez que a nossa quinta estava a dez ou quinze minutos da vila, fazendo o percurso a pé, acontecia que pessoas vindas de lugares mais afastados da direcção de Fatela, Valverde ou Carvalhal, nos pediam para ali deixar burros e cavalos, enquanto se iam aviar no mercado.
Não os levando para o mercado, já não ficavam sujeitos a eventuais encontros com as patrulhas da guarda republicana.
Porém, a sorte dos animais não era das melhores, pois enquanto ali ficavam, serviam para serem montados e organizarmos corridas com os mesmos.
Claro que tudo isto acontecia porque os nossos pais também tinham ido para o mercado.
Alguns trambolhões iam acontecendo, ao mesmo tempo que os donos manifestavam a sua estranheza por verem que os animais estavam ofegantes e espantadiços, se porventura regressavam mais cedo do que o esperado.
Então se algum dos animais fugia é que era o pânico até conseguirmos recuperá-lo.
Tudo acabava em bem e nós, garotos, “nunca sabíamos” o que tinha acontecido.
Tal como na natureza, os ciclos de vida vão acontecendo com as pessoas, o que permitia aos mais novos verem nos mais velhos as transformações que haveriam de chegar até si.
Dessa forma se deram conta de episódios ocorridos com os mais velhos, quando chegados à adolescência, como era o caso da prática furtiva de uma das formas do onanismo.
Também a evolução física das irmãs mais velhas não passava despercebida aos mais novos, com a utilização frequente e demorada dos espelhos.
Essa fase dava azo ao acompanhamento dos seus namoros, por acontecerem em casa, havendo a oportunidade de os garotos como eu se insinuarem junto dos pretendentes, que através dos mais pequenos e dos mimos que lhes proporcionavam, tentavam conquistar as boas graças das irmãs mais velhas.
E se eram bonitas as minhas duas irmãs.
Houve bailaricos, tanto na nossa como nas quintas de outros vizinhos, e alguma chantagem fiz com as irmãs quando tinham de obter permissão da mãe para sair, que logo lhes impunha a minha companhia, por ser o benjamim da família.
Fazia-me rogado, mas depois de conseguir alguma pequena vantagem lá ia a servir de guardião, fingindo que nunca via qualquer beijo dado à socapa.
Eu até gostava de ir, mas era útil dizer que era um grande frete.
Como era normal para as pessoas de poucos recursos, sem possibilidade de mandar os filhos estudar, como era o nosso caso, havia que lhes ensinar uma arte.
As minhas irmãs aprenderam costura, bordados e tudo o que está relacionado com esse ofício.
Serviu para terem o seu modo de vida e, com maior ou menor dificuldade, deram aos seus filhos uma instrução diferente daquela que lhes foi proporcionada, o mesmo acontecendo com os outros irmãos.
Sendo o mais novo, tive alguns privilégios.
Logo que completei o ensino primário, tinha onze anos, fui aprender a dactilógrafo para o consultório de um advogado.
Por essa razão fui menos chamado aos trabalhos da quinta do que os irmãos mais velhos, mas não deixei de fazer trabalhos como os de alisar margens em alturas de sementeira, pela madrugada, antes de ir para o emprego.
E ainda outros, como os de ir levar o leite das vacas ao matadouro ou a outros consumidores caseiros, de sachar o milho, de ceifar o trigo, de arrancar e apanhar batatas, de apanhar a azeitona, de colher a fruta, de ceifar a forragem para os animais e muitas outras tarefas das quais o nosso pai não nos libertava.
Sempre com os adágios na boca, justificava o trabalho dos filhos ainda pequenos, que agora seria classificado de exploração infantil, com a frase: o trabalho do menino é pouco, mas quem o perde é louco…!
Hoje louvo tal forma de encarar a vida.
Felizmente tive a oportunidade de trabalhar e estudar o suficiente para conseguir um rumo de vida, sem que isso pesasse no orçamento da família, que exigia dos filhos a quase totalidade do ordenado que ganhavam, até à fase em que teriam de poupar para se casar.
A ajuda de um irmão mais velho – o nosso Tó - foi fundamental nessa fase dos estudos em simultâneo com o trabalho, amenizando algumas das despesas com explicadores e os livros necessários. E já com autonomia própria, foi então possível continuar a estudar, acabando por seguir de forma não consciente o lema “aprender até morrer”. E o recurso a métodos autodidácticos tem sido constante.
Em casa não se governavam filhos que não obtivessem rendimento, para que o agregado familiar pudesse viver o melhor que era possível e de forma equilibrada.
Esse equilíbrio era por vezes desfeito com as doenças e minha mãe foi toda a sua vida uma mulher doente.
Mas uma vez mais o adágio popular a justificar a sua existência até aos 91 anos:- mulher doente é mulher para sempre.
Numa dessas alturas de doença, minha mãe teve de pedir dinheiro emprestado para se deslocar a Lisboa e ser tratada.
Já me encontrava a trabalhar no consultório do referido advogado, quando surgiu no Jornal do Fundão uma espécie de totobola, com um prémio de quinhentos escudos em livros.
Joguei e acertei no prémio da semana, prontificando-se então o advogado, meu patrão, a ficar com os livros por quatrocentos escudos. Na altura era uma importância considerável.
Quando minha mãe soube que eu trazia para casa quatrocentos escudos, numa fase tão difícil da sua vida, só rezava e dava graças a Deus por lhe ter acudido naquele momento, por meu intermédio.
Julgo ter compreendido naquela altura o que é ser útil nos momentos de dificuldade de alguém, e penso que na minha vida tenho sido compensado por esse pequeno acto de generosidade.
Quando as doenças eram prolongadas, num tempo em que os meios para as tratar não eram os melhores, tornava-se fácil induzir as pessoas a recorrer também a mezinhas, curandeiros e às rezas para as debelar.
Assisti a situações dessas em minha casa, mas ainda hoje respeito a regra “a fé é que nos salva, não é o pau da barca”, isto a propósito de alguém incumbido de ir buscar uma pequena porção de madeira da cruz de um lugar de devoção, para curar uma pessoa muito doente.
Porque tinha de atravessar um rio e nesse dia o barqueiro estava impossibilitado de o levar à outra margem, decidiu retirar do remo uma pequena lasca de madeira e levá-la, como se fosse da cruz do tal lugar de devoção.
O efeito produzido foi aquele que as pessoas desejavam e a cruz passou a ser ainda mais adorada e despojada de fragmentos da sua madeira, sempre que alguém em aflição recorria a essa forma para debelar alguma doença.
Porque a pessoa incumbida da tal missão não podia contar a verdade, quando era convidado a confirmar o milagre, limitava-se a dizer aquela enigmática frase “a fé é que nos salva, não é o pau da barca”.