terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

17. Crendices - a boa ou a má hora ou o medo das encruzilhadas

Histórias, muitas histórias se contavam ao serão, à volta da lareira.
Era a forma de consumir as horas, enquanto não chegava o momento de o sono nos chamar para a travessia das longas noites de um tempo sem motivos para estar acordado.
Nem a música nos aparecia em casa, já arranjada noutros lugares ou estúdios. A que se consumia era a que saía das gaitas de beiços ou do harmónio que em tempos mais recuados o meu pai manuseava de forma algo incipiente.
E só esses ingredientes musicais poderiam fazer com que o serão fosse alongado na noite.
Mas as lanternas e as candeias consumiam petróleo ou azeite e esses produtos também não podiam esbanjar-se.
Quanto a música vinda pelas ondas hertzianas, posso dizer que houve um tempo em que também passou a existir na minha juventude – quando consegui montar uma galena, segundo um esquema que acompanhava o conjunto das suas peças, que troquei por uma maquineta de afiar lâminas de barbear, que na altura ainda não precisava, adquirida a prestações numa casa de ferragens.
Mas o som, não amplificado, só no profundo silêncio da noite se conseguia ouvir nos seus auscultadores, graças a uma antena de mais de 100 metros.
Era, pois, num ambiente destes que as histórias fantásticas surgiam, contadas pelos mais velhos.
E o imaginário desse tempo era muito fértil em crendices, lendas, bruxarias, benzelhões e todo o tipo de loas ao gosto de qualquer um, que mais não serviam do que justificar o que pareciam ser coisas do outro mundo.
Em noites de lua cheia havia de ser lembrado o lobisomem, como em noites de escuridão havia de ser lembrada a boa ou a má hora, a primeira vestida de branco e a segunda vestida de negro.
Essencial era evitar as encruzilhadas à meia noite, pois o risco de ter um mau encontro ou uma assombração eram grandes.
Coisas tão banais e bem justificadas nos dias de hoje, como uma donzela ser recolhida sem quaisquer vestes numa noite escura, eram logo tidas como bruxarias.
Recordo o que se contava sobre o lugar ainda hoje existente e onde passo quase todos os dias, conhecido por Cruz de São Marcos, onde um grande senhor da época, montando o seu cavalo, encontrou em noite de grande frio uma jovem toda despida, a quem teve de ceder o seu capote para a agasalhar.
- Como foi parar a jovem junto à cruz naquele estado? Só podia ser coisa do diabo ... !

Sem comentários:

Enviar um comentário