sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

21. O número da bola

Com os cromos da bola que então havia, o preenchimento completo de uma caderneta que os vendedores forneciam aos que adquiriam os rebuçados que vinham acompanhados desses cromos, proporcionava como prémio uma bola de cautchou, que era a máxima aspiração de qualquer criança dessa época.
Basta lembrar que a maior parte das crianças jogava com bolas feitas de trapos, dentro de uma meia já sem condições de ser usada.
Alcançar esse objectivo era, por isso, uma proeza muito difícil de conseguir, face ao grande investimento na compra de rebuçados, visto que a caderneta tinha muitos números para coleccionar.
É certo que havia a possibilidade de trocar cromos com outros coleccionadores, de forma a que os respectivos lugares de colagem na caderneta se fizesse correctamente.
Eram muitos os meses que se levava para chegar a esse preenchimento, mas depois surgia o grande obstáculo de se chegar ao chamado número da bola, o único número duma determinada quantidade de rebuçados, a que correspondia o tal prémio da bola de cautchou.
Claro que esse número de cromo não surgia no início da venda dessa grande lata de rebuçados, pois se tal acontecesse a venda dos restantes ficaria comprometida.
Presumo que seria o próprio comerciante a lançá-lo dentro da lata quando ali existissem poucos rebuçados para vender ou que viesse mesmo colado no fundo a garantir que todos os outros fossem vendidos primeiro.
Precisamente o comerciante que nos ficava à mão para comprar esses rebuçados era o Sr. Zé Carlos, no bairro de Santo António, que tinha taberna e mercearia.
E percebendo nós que só unidos é que poderíamos chegar ao objectivo de trazer a bola para os nossos encontros de futebol, foi por isso acordado comprar os rebuçados e preencher uma só caderneta com os cromos que todos conseguissem.
E lá chegámos ao dia em que nos faltava apenas o número da bola.
Era o 40 e o cromo correspondia à figura do guarda redes da equipa da CUF, cujo nome já não recordo.
Mas por muito que comprássemos nunca mais aparecia o tão desejado número e por isso tentávamos adivinhar se havia muitos ou poucos rebuçados na lata, conforme o braço do comerciante entrava mais ou menos profundamente dentro dela.
A dada altura pareceu-nos que a lata estava por fim e a nossa angústia prendia-se com a possibilidade de serem outros a levar o número da bola.
E surge então a maquiavélica ideia de forjar um “número da bola”, que permitisse dar a ideia que a caderneta tinha ficado completa.
Para isso servimo-nos de um cromo de jogador da equipa da CUF, por causa do equipamento, e de outro que tinha o nome igual ao do guarda redes da CUF.
Depois foi recortar o nome e os algarismos 4 e 0, colando-os sobre os que tinha o cromo utilizado.
Parecendo que a sabotagem estava perfeita, faltava no entanto a coragem para levar a caderneta ao comerciante e enfrentar o risco de sermos descobertos e levados perante a polícia, com a consequente intervenção dos nossos pais.
O certo é que a coragem surgiu e a sabotagem foi de tal modo convincente que a bola nos foi entregue por troca da caderneta completamente preenchida.
Claro que depressa se ficou a saber que tinha havido batota com o número, pois entretanto surge o verdadeiro e já não havia bola para ser entregue como prémio.
Durante longo tempo não fomos comprar rebuçados na taberna do Sr. Zé Carlos, até que nos pareceu ter-se esfumado a lembrança deste acontecimento e terminado a ameaça dum merecido castigo.
Terei sido o autor moral desta sabotagem e, não me orgulhando dela, tenho-a na memória como um feito que parecia impossível dada a circunstância de ter conseguido forjar um engano numa situação perfeitamente controlável pelo comerciante, dada a existência de um só número para completar a caderneta e de o mesmo ser introduzido ou estar colado na lata quando já havia poucos para vender.
Apesar desta aparente proeza em conseguir a tão desejada bola, a verdade é que não foi fácil passar a usufruir dela.
Primeiro, porque ainda estava fresco na memória o caso da caderneta e da trafulhice com o “número da bola”, facto que foi bastante badalado, depois porque o nosso acesso a bolas para jogar passava sempre pela bola de trapos e não seria fácil de justificar, perante os nossos pais, a existência de uma bola daquela categoria.
Então começou por ser guardada num canto da loja das vacas debaixo da palha e de lá só era retirada quando nos era possível jogar longe dos olhares dos nossos pais.
Até que inventámos a história de uma bola que tinha vindo pela ribeira abaixo e que nós tínhamos encontrado.
Mas o que realmente a bola permitiu foi adquirir um estatuto que até aí não tínhamos, pois a cedência da bola para os encontros de futebol passava pelo privilégio da escolha dos companheiros para formar a nossa equipa.
E nessa circunstância eram escolhidos os mais habilidosos e mais encorpados, permitindo à nossa equipa vencer sempre os encontros.
O "crime" até foi perfeito, mas não deixou de o ser.

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