sábado, 27 de fevereiro de 2010

1. A quinta

As dimensões daquele lugar eram enormes para mim, enquanto lá vivi. E foram cerca de 17 anos. Não que fosse difícil percorrer a distância que ia da eira até ao fundo da quinta, na parte contígua ao vizinho Rodrigo e à ribeira que a banhava pelo lado poente, a seguir ao limite da “quinta da vizinha”, que parecia encastrada entre a ribeira e a nossa quinta.
Mas a perspectiva em que eu a via, tornava-a duma enorme grandeza.
E essa perspectiva era a de alguém que ali abriu os olhos para o mundo e viu surgir perante eles aquela imensidão de pequenas e grandes coisas, que transformam a natureza num tesouro que nunca valorizamos como deve ser.
Era a “nossa quinta”, se bem que para dela podermos usufruir tivesse de ser paga renda, mais dois terços da azeitona e parte da lenha que os proprietários se encarregavam de seleccionar e colocar à sua ordem, fazendo cortar as árvores envelhecidas, como acontecia com as oliveiras.
Em quase todas as situações era o próprio rendeiro que tinha de levar-lhes a lenha a casa, já cortada no tamanho adequado ao seu consumo.
Um tempo em que o pequeno rural poucas oportunidades tinha para modificar a curvatura das suas costas, face aos senhores das terras.
A casa, virada para a eira, tinha as suas traseiras para a estrada nacional 343 e o seu acesso era feito através do portão que dava para a não muito larga passagem, que dum lado tinha a porta da casa e do outro a porta da “lojinha”, o nome que dávamos à arrecadação das coisas rurais, que ali existia.
Logo a seguir a esta arrecadação e também em frente, havia currais ou pocilgas, que nem sempre estavam ocupados.
Sobre o curral que se via logo em frente estendia-se a velha videira de uvas muito tintas e que só para o vinho eram boas, proporcionando sombra aos “moradores” que por lá iam passando.
Porque estes, quando gordinhos, tinham o destino traçado – a matança e o abastecimento da salgadeira - que por sua vez haveria de abrir-se muitas vezes ao longo do tempo, até esgotar o seu conteúdo.
E quanto mais vezes se abrisse, melhor seria para a mesa dos seus donos.
Outros ainda, seriam destinados à venda, que se fazia em dia de mercado semanal, na vila que era também a sede do concelho.

A nossa mãe com a prima Amélia, do S.Braz, junto ao curral com a videira

Um pouco mais além, estavam também as capoeiras, onde os galináceos tinham os seus domínios.

As irmãs Anunciação e Fernanda, junto à capoeira

Para a esquerda, ficava a eira, que numa quinta exercia uma função da maior importância e, para além dela, o tanque, que tanto era abastecido pela água do poço da “pontaria” ou nora de alcatruzes, movida pela vaca, como pela água que vinha da ribeira ou da adua.
Depois da eira e para a direita começava o canchoso e a seguir a este a quinta propriamente dita, numa primeira faixa até ao cômoro de cima.
O canchoso, com a sua vedação em cana, era um espaço que permitia a cultura e desenvolvimento de todos os produtos hortícolas, protegidos dos tais galináceos que ali eram criados e que tinham grandes oportunidades para se movimentarem livremente pela quinta, sempre que não houvesse sementeiras ou produtos importantes expostos aos seus vorazes bicos. Mas não tão protegidos estavam os produtos hortícolas do canchoso, que de vez em quando não fossem invadidos por alguns desses animais, sempre que conseguiam esgravatar buracos na paliçada ou sobre ela se projectavam em voo picado.
Quando tal acontecia, o resultado era sempre desastroso para a horta.
Nessa área, que digo mais ou menos protegida, havia o poço com escadaria interior até à bica, que no verão abastecia a casa com a sua água.
A água que também servia para regar a horta, mas que tinha de ser retirada manualmente com o “burro” ou picota.
O poço tinha a sua borda ao nível do chão, ou seja, não havia qualquer vedação física acima deste, mas à sua volta havia uma pequena faixa de jardim, onde havia muitas outras flores, mas a que mais me recorda existir era a dos lírios, pelo facto de muitas vezes cortar uma das suas folhas, meter no meio uma palha e assim criar uma espécie de corneta que, quando soprada, emitia um som muito característico.
E esse jardim, que não podia ser pisado, constituía então a área de segurança que nos protegia relativamente ao poço.
Talvez porque sempre foi respeitada a área de segurança, nunca houve qualquer problema mesmo com os garotos mais pequenos, cuja curiosidade os torna menos cautelosos que os adultos e por isso mais sujeitos ao acidente.

Em primeiro plano, à direita, com irmãos, cunhado e vizinhos, apenas alguns. Por trás, o canchoso

Mas o canchoso não era só hortejo, pois tinha bastantes árvores de fruto, das quais se destacava a figueira de qualidade “castelo de vide”, com o seu majestoso porte e onde colher os figos em segurança, só de escada ou de roca, embora o rapazio não estivesse com meias medidas para trepar até aos sítios mais altos, apesar da fraca consistência das pernadas que, com os anos se tornavam mais volumosas, mas de grande fragilidade.
Mas também havia cerejeiras e pessegueiros.
Era um espaço que tinha a função de abastecer a casa de todos os produtos frescos, como alfaces, couves, ervilhas, feijão verde, favas e muitas outras plantas aromáticas, que hoje em dia qualquer praça proporciona aos habitantes dos aglomerados urbanos.
Simplesmente, estes produtos tinham mais garantias quanto ao seu cultivo biológico.
Fora dessa área mais protegida começava a terra de cultivo ou de sementeira.
No espaço que ia até ao cômoro do meio e, finalmente, até ao fundo, estendia-se a quinta que já se disse ser contígua à do Rodrigo e à ribeira.
Partindo do tanque, havia o rego da água que a atravessava do cimo ao fundo, proporcionando a irrigação onde se quisesse.
Ao seu lado a vereda, que de tanto ser calcorreada, se apresentava isenta de qualquer erva, mais parecendo varrida a todo o instante.
As árvores de fruto existiam praticamente em toda a quinta, embora predominando em maior quantidade perto da casa, numa estratégia de proximidade às habitações, que praticamente era seguida em todas as pequenas quintas, o que teria a ver com a protecção das mesmas.
Na área mais afastada da habitação era o lameiro com algum olival, embora existissem oliveiras em quase toda a quinta e, para o lado da ribeira, a parte mais árida.
Como atrás se disse, a quinta tinha praticamente todo o tipo de árvores de fruto, e só de pensar nalgumas delas me faz crescer água na boca, como é o caso das cerejas, as peras, as maçãs das mais variadas qualidades, mas com destaque para a “bravomofo” ou correctamente “bravo de esmolfe”, os malápios, as uvas, os figos, os abrunhos, as ameixas, ou até os de características mais selvagens, como as amoras silvestres, os “perinhos do menino Jesus” e, no seu momento certo, os de horta ou de rastejo, como o melão ou a melancia.
Mas muitas outras ficam por enumerar.
Se a localização das árvores de fruto era estrategicamente mais perto da habitação, já as videiras se estendiam ao longo dos cômoros, visto que as latadas em que eram dispostas tinham também uma função de divisória, a demarcar leirões ou mesmo a propriedade entre vizinhos.
Existia depois a videira que, além das uvas também produzia sombra, como era o caso das existentes sobre o curral ou sobre os galinheiros.
Mas a produção da quinta não se ficava pela fruta, pois havia também os cereais, como trigo, pão, aveia e outras forragens, que permitiam a criação dos animais que já foram referidos e ainda as vacas, ovelhas ou cabras, embora sempre em número reduzido.
Aquilo que na linguagem das pessoas do campo se designa por “vivos” e que, nas circunstâncias, eram também uma fonte de rendimento a quando da venda da descendência e, enquanto produtores de leite ou de carne, no seu abate, eram também o sustento da família.

A porca com a sua ninhada

Era com a produção dos cereais que normalmente se pagava a renda à senhoria, embora da parte sobrante da produção fosse em primeiro lugar abastecida a casa com a farinha que havia de dar lugar ao pão que lá se consumia, para além de alguma parte que produzia um rendimento necessário à família, e que era entregue na cooperativa ou aos intermediários da sua venda.
Mas para converter os grãos em farinha, alguém havia de os levar à azenha da senhora Delfina, na ribeira de Alverca perto da Ponte Romana, transportando-os na taleiga, que quando não muito pesada, ainda ajudei a transportar.
Aplicada a mesma regra à azeitona, da parte do rendeiro ficava a que, retalhada e adoçada do seu agre, era consumida em casa, mas também se dava ao lagar para ser moída e dela se extrair o azeite que poderia ser vendido em parte, mas sempre depois de se retirar aquele que iria ser consumido pela família.
Embora os tempos fossem de poucas farturas, ainda assim, podia aplicar-se o ditado que diz que “quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é burro ou não sabe da arte”.
Por isso, nunca existiram queixas quanto à qualidade do que era consumido na família e não só, pois os parentes e amigos, quando apareciam na hora do comer, sempre foram convidados a sentar-se à mesa, onde não faltava um lugar para eles, do mesmo modo que o tinham à volta do pipo ou salgadeira, se fosse o momento oportuno.
Importa referir ainda os marmelos, que se transformavam em marmelada e que na época própria não deixava de ser feita, tal como o licor que também deles derivava.
Mas os marmeleiros, na sua floração proporcionavam ainda à garotada, através das suas pétalas, um petisco muito apreciado e que era chamado de “galula”.
Tinham de facto um sabor muito especial as pétalas da flor do marmeleiro e disso era prova o assédio que as abelhas lhe faziam.
E tais abelhas eram também habitantes da quinta, nalgumas colmeias que existiam para a produção de mel.
Eram, pois, estas as características da pequena quinta, chamada de Chão de Alverca, cujo nome lhe era dado pela sua localização junto à ribeira que também assim se chamava, perto da ponte, na estrada que liga o Fundão a Valverde.
E se apenas estes nomes são referidos, é porque os horizontes dos então moradores se estendiam praticamente a estas duas povoações – Fundão e Valverde.

1 comentário:

  1. Acho fantástico este reviver do passado. Faz-nos retroceder no tempo e recordar
    com emoção os tempos da meninice, pese embora as dificuldades, eram tempos
    maravilhosos, com a liberdade que só nós, os putos da aldeia sabíamos valorizar.
    Obrigado por estes maravilhosos textos. António Correia

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