quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

4. A eira

Havia também um destes espaços e bastante grande, situado em frente da casa, onde se desenrolavam as mais variadas e importantes actividades relacionadas com a vida rural da quinta, com destaque para as que tinham a ver com os cereais.
Enquanto não era utilizada para esses fins específicos, ia servindo de campo de futebol para a garotada, embora a posição do tanque na cabeceira tivesse os seus inconvenientes, uma vez que a bola estava constantemente a ser retirada da água.
Mas era também na eira que, em pequeno, de verão e ao sol, nos era dado banho dentro de uma celha que normalmente era utilizada para a barrela da roupa.
E a temperatura da água era a que tinha no tanque em que era recolhida.
Em casa o banho era-nos dado numa bacia bastante grande e com diversas utilizações, embora nessa altura a água fosse aquecida.

O rolheiro da palha - atractivo das crianças

Na maior parte do ano, à eira não era dedicada uma atenção muito especial, limitando-se a ser local de armazenamento de palha que resultava das malhas do cereal, que ali eram feitas, colocada na forma de rolheiro e protegido com uma cobertura de colmo para evitar a infiltração de água, que poderia fazê-la apodrecer.
Mas o espaço era aproveitado para muitas outras actividades, como a descamisa do milho, que proporcionava momentos de muita alegria e de oportunidades para se iniciarem contactos entre raparigas e rapazes, que dariam lugar a namoricos ou mesmo casamentos.
Durante a descamisa, o divertimento acontecia sempre que algum rapaz ou rapariga tinha a sorte de lhe calhar uma das maçarocas de milho acastanhado ou ouro velho, chamada de milho-rei, sendo a segunda maçaroca com estas características a indicação de que deveria unir-se com a primeira.
Quando a segunda maçaroca não ia parar às mãos do rapaz ou rapariga interessada, criava-se o estratagema de a fazer lá chegar.
De qualquer modo, o fim da descamisa proporcionava sempre um bailarico, que tanto podia ser animado por uma concertina ou um simples realejo, como era chamada a gaita-de-beiços.
Ainda um acontecimento também marcante, acontecia no Outono, precisamente no dia de São Martinho ou em dias próximos, com o tradicional magusto.
Toda a animação que lhe era própria, também acontecia, envolvendo vizinhos e amigos.
Também ali se desenrolavam muitas outras brincadeiras da gente jovem, como o jogo da corda ou do lançamento do ringue, e outros próprios das crianças, como os jogos do pião, do berlinde, das escondidas e até da bilharda, embora este jogo tradicional criasse diversos problemas aos vidros das janelas ou às telhas, quando o lançador a projectava desordenadamente nessas direcções.

Jogando à corda - a eira e o tanque

Em tempo de Carnaval, aconteciam os jogos tradicionais próprios da época, com destaque para o lançamento do panelo ou vaso de barro, que era projectado de pessoa em pessoa até que alguém, não conseguindo apanhá-lo, o fazia estatelar-se no chão feito em cacos.
A malha, de que resultava a palha armazenada, era o momento alto da vida de uma quinta, só superado por algum banquete de casamento ou baptizado. E o de uma boda de casamento da minha lembrança, também aconteceu ali. Mas será desenvolvido noutro capítulo.
Dependendo da quantidade de cereal a malhar, durava um ou dois dias e nela participavam muitos familiares e vizinhos, que depois teriam a merecida recompensa ao serem ajudados nas suas próprias malhas, pelos vizinhos que agora tinham ajudado.
Era a cooperação entre vizinhos e familiares, que se dizia ser “a merecer”.
No entanto, a preparação da eira começava alguns dias antes, reparando buracos e sendo barrada com uma mistura muito aguada de barro e excremento de vaca.
O barro, que já tinha sido recolhido nalgum barreiro para os lados da serra, era bem esmagado e joeirado para que ficasse pronto a ser dissolvido na água.
Espalhava-se então essa aguada de barro pelo chão, de modo a criar uma película uniforme que, depois de seca, iria impedir que os grãos dos cereais malhados se infiltrassem, ficando em condições de ser recolhidos e ensacados.
Até ficar seca, depois de barrada, nem pessoas nem animais podiam transitar pela eira.
Por vezes, alguma galinha conseguia soltar-se e era um desastre, pois esgravatava aquele tapete de barro e lá tinha de fazer-se tudo de afogadilho, principalmente se o dia da malha já estava perto.
Havendo muita gente empenhada na malha, naturalmente que tinha de fazer-se muita comida para alimentar aquelas pessoas.
Matavam-se alguns animais, já destinados para essa ocasião, e lá vinham as vizinhas e familiares ajudar a confeccionar a comida.
Era mesmo uma boda.
Mas até ao momento de os malhadores se sentarem à mesa, havia diversas pausas para refrescar as gargantas com uma mistura de vinho, água e açúcar, a que era dado o nome de champorrião.
Sendo em altura de muito calor que aconteciam as malhas, os malhadores tinham de compensar os líquidos derramados pela transpiração, fazendo-o nestas breves pausas.
Aconteciam então cenas muito curiosas e inolvidáveis, como a de um tio que se deitava de costas na palha e, de boca aberta, permitia que para lá despejassem o champorrião, que se infiltrava sem qualquer movimento da garganta, a engolir.
Todos os que tentavam imitar a situação, reagiam de forma aflitiva, engasgados com o líquido.
A arte de malhar a mangual, não podia ser desempenhada por quem não tivesse experiência para tal, uma vez que o batimento se fazia à vez sobre as molhadas de cereal, dispostas em filas, pelos malhadores alinhados em filas de cinco ou seis, uma em frente da outra.
Para que as filas dos molhos do cereal não se deslocassem, à medida que iam sendo batidas pelos malhadores, colocava-se alguém no topo com um dos molhos do mesmo cereal espetado numa forquilha, dizendo-se que essa pessoa, normalmente um dos mais novatos, estava a fazer a bicha.
A malha ao ritmo do mandador
Todos os malhadores com o seu mangual, teriam de fazer girar o perítico, ou popularmente “pirto”, para o mesmo lado, de modo a não se tocarem sobre as cabeças e causar algum dano.
O mangual
Quando algum canhoto fazia parte do grupo, normalmente era colocado numa ponta, de modo a não atrapalhar os demais.
E o batimento cadenciado e quase sempre comandado por um som gutural emitido por um mandador, lá se ia repetindo ao longo do dia por aqueles homens que, para atenuar o peso da roupa, apenas vestiam ceroulas brancas e camisolas interiores, normalmente com mangas, para se protegerem da poeira dos cereais que também causava alguma irritação à pele.
As ceroulas eram bem ajustadas ao fundo da perna pelos nastros, procurando evitar que as espigas ali se introduzissem, visto que estas se deslocam sempre para cima e são intoleráveis.
Chegava a hora da refeição e então era a festa, principalmente para a garotada, não tanto pela comida mas pelo privilégio de se sentarem ao lado dos malhadores.
E essa festa era ainda maior quando a malha terminava e se retirava a palha, para virem a ser formados os rolheiros.
Os garotos brincavam, dando cambalhotas e perfurando a palha, prolongando-se o dia pela noite dentro ou até mesmo ao dia seguinte, pois nesses dias havia autorização para levar uma manta e dormir ao relento, na palha.
E em noite de céu estrelado, com ausência de luminosidade ambiente, surgia então a oportunidade de observar no firmamento a Via Láctea e as constelações, ouvindo dos mais velhos a história do “caminho de Santiago”.
Na forma tradicional que foi descrita, haviam de acabar as malhas, pois começaram a surgir as debulhadoras ou malhadeiras, primeiro, movidas a motores que funcionavam a lenha e carvão e, depois, a petróleo e gasóleo.
Não fomos dos primeiros a ser contemplados com esta forma de fazer a malha, pois o acesso à quinta não permitia que as primeiras máquinas, muito volumosas, lá chegassem.
Era então levado todo o cereal para a quinta do vizinho e aí se fazia a debulha por essa forma mecânica.
Mas foi na eira que um dia, ao regressar da escola, encontrei minha mãe e mais duas ou três pessoas a apanhar o sol de um fim de tarde outonal.
Já tinha passado pela cozinha e recolhido uma fatia de pão, que tinha ensopado com o azeite de uma fritadeira, e que ia comendo.
“Dei a salvação” aos presentes com as “boas tardes” e logo minha mãe me diz num tom pouco amigável:
- Come lá o pão, que já conversamos.
- Mas o que é que eu fiz ? – perguntei, sabendo que aquela conversa iria colocar-me na mira da mão lampeira de minha mãe.
Foi então explicado que o Quim da vizinha havia retirado da gaveta da taberna dos pais alguns escudos para comprar rebuçados dos cromos da bola, que eu o tinha incentivado e também tinha participado no gasto do dinheiro.
Dessa vez não era verdade, embora noutras ocasiões tivesse usufruído da compra dos números da bola, que eram vendidos na vila, na taberna do Zé Carlos.
Choraminguei, argumentando que não tinha qualquer culpa e escapei-me o mais que pude, sem que tivesse levado qualquer castigo.
Passado pouco, de novo sou chamado por minha mãe para ir fazer um outro recado e então diz-me:
- Mexe-te, porque já levaste duma e ainda levas doutra.
Foi então o alívio, porque julgou ter-me batido, mas afinal nada acontecera.
Era na eira e ao sol que também muitas vezes acontecia a desinfecção das nossas cabeças, quando se detectava algum piolho, o que era normal acontecer com os garotos nas escolas.
Nas raparigas era com um pente de dentes mais espessos que se desenguiçava o cabelo e que a seguir era escovado.

Sem comentários:

Enviar um comentário