segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

18. Lições de vida

Ter nascido e ser criado num espaço campesino como era este, também situado relativamente perto da urbe, a então vila do Fundão, pode dizer-se que foi um privilégio.
A participação e acompanhamento dos ciclos de vida da natureza, nos seus mais pequenos aspectos, é uma experiência que nos enriquece e molda de tal forma, que as suas marcas não mais vão desaparecer.
Não foi fácil dar uma cronologia a muitos dos factos relatados, contudo a separação dos momentos de criança à guarda dos pais ou de irmãos mais velhos, sempre preocupados com as traquinices que poderiam redundar em acidentes, de outros momentos em que agimos com mais independência, como aquele que nos leva à escola pela primeira vez, é perfeitamente perceptível no arquivo que é a nossa memória.
De criança bastante pequena, sobra uma recordação fisicamente muito dolorosa, quando me preparava para entrar em casa.
Tropeço numa das pedras da calçada à portuguesa, que havia em frente da porta, e vou de cabeça contra o degrau que ali existia.
Era dia de mercado, os pais não estavam, e eu encontrava-me à guarda de uma irmã mais velha, a qual numa aflição indescritível corre comigo ao colo para casa da vizinha a pedir socorro e tentar estancar a sangria que o golpe na testa havia provocado.
Num dos regatos onde a água corria, lavaram a ferida, puseram açúcar branco, mercurocromo, sulfamidas e não sei que mais, com tiras de pano fizeram compressas que enrolaram à volta da cabeça, até que o sangue estancou.
Era um sítio de má memória para mim, porque a cena havia de repetir-se uma vez mais, pelo menos, tempos depois.
Mas as recordações não tiveram apenas a ver com factos palpáveis ou mais ligados ao aspecto material, porque a morte dramática da filha da vizinha, atropelada em cima da ponte, numa altura em que preparava o seu futuro, deslocando-se para a aprendizagem aos bordados, deixou-nos deveras contundidos emocionalmente.
Já foi dito que nestas pequenas quintas a relação com os vizinhos era quase a mesma, ou melhor ainda, do que a que se tinha com a família. E tudo o que de bom ou de mau acontecia era sempre partilhado de igual forma.
A solidariedade era um valor que estava sempre presente nas relações de vizinhança.
Por isso a tragédia que atingiu os vizinhos foi mesmo um momento de grande sofrimento para todos.
Nesses ciclos de vida - não eu porque fui o último dos sete irmãos a nascer - os mais velhos tiveram a oportunidade de assistir a partos de gente e de muitos animais.
Porque nesses tempos, ainda quase todas as crianças nasciam em casa com a ajuda de parteiras.
Era então muito popular o nome da senhora Celeste, uma parteira que sei ter também ajudado ao meu nascimento.
Mas do acto de parir, sobram-me as recordações dos que ocorreram com vacas, cabras, ovelhas, coelhos e cães.
E como tudo o que é pequeno tem graça, sempre que havia bezerrinhos, cabritos, carneiros e outros, a garotada estava sempre disposta a acomodá-los e divertir-se com as suas próprias brincadeiras.
Quando os cabritos já acompanhavam a mãe para o pasto, as suas brincadeiras eram inigualáveis.
Formavam filas e corriam em pinotes com as quatro patas juntas, jogavam às escondidas e todos nós os provocávamos nessas brincadeiras.
Até combates fazia entre si, exercitando-se para quando fossem grandes e disputassem alguma fêmea.
Quando se lhe dava um miolo de pão, vinham comê-lo à mão e isso era sempre um gesto muito apreciado por nós.
Mas havia também quem lhes pregasse partidas, como aquelas do irmão António, para nós simplesmente o Tó, que lhes metia pedaços de malagueta no pão, deixando-os a soprar e espirrar, enquanto ele gozava perdidamente, rindo-se a bandeiras despregadas.
Eu já teria cerca de dez anos quando a estrada nacional foi alcatroada.
Até então era uma estrada de terra batida, que em tempos de chuva ficava quase intransitável.
Após chover formavam-se pequenos charcos e se acontecia deslocar-nos por ela durante a noite, mesmo com luar, esses charcos a que chamávamos “braseiras”, eram confundidos com terreno limpo, ao reflectirem o firmamento.
Por isso era fácil metermos o pé na poça e as botas, tamancos ou sapatos, lá ficavam completamente encharcados.
A permissão de vir à noite à vila não era fácil de conseguir, enquanto criança.
Quando passou a acontecer, os pais sabiam perfeitamente onde íamos e com quem íamos.
Não consigo lembrar-me de quantos anos teria, porém já andava na escola havia bastante tempo.
Fui com um dos meus irmãos ver um teatro ambulante, cujos cenários iam mudando à medida que a peça se desenrolava.
Tinha a ver com a história de Portugal e foi um momento de tal modo marcante, que julgo ter passado para a própria génese. Sempre gostei de teatro.
Na época, qualquer carro de bois ou animal tinha de ter a sua licença, embora o dinheiro nem sempre fosse de tal monta que a gente rural tivesse meios para tirar essas licenças.
Uma vez que a nossa quinta estava a dez ou quinze minutos da vila, fazendo o percurso a pé, acontecia que pessoas vindas de lugares mais afastados da direcção de Fatela, Valverde ou Carvalhal, nos pediam para ali deixar burros e cavalos, enquanto se iam aviar no mercado.
Não os levando para o mercado, já não ficavam sujeitos a eventuais encontros com as patrulhas da guarda republicana.
Porém, a sorte dos animais não era das melhores, pois enquanto ali ficavam, serviam para serem montados e organizarmos corridas com os mesmos.
Claro que tudo isto acontecia porque os nossos pais também tinham ido para o mercado.
Alguns trambolhões iam acontecendo, ao mesmo tempo que os donos manifestavam a sua estranheza por verem que os animais estavam ofegantes e espantadiços, se porventura regressavam mais cedo do que o esperado.
Então se algum dos animais fugia é que era o pânico até conseguirmos recuperá-lo.
Tudo acabava em bem e nós, garotos, “nunca sabíamos” o que tinha acontecido.
Tal como na natureza, os ciclos de vida vão acontecendo com as pessoas, o que permitia aos mais novos verem nos mais velhos as transformações que haveriam de chegar até si.
Dessa forma se deram conta de episódios ocorridos com os mais velhos, quando chegados à adolescência, como era o caso da prática furtiva de uma das formas do onanismo.
Também a evolução física das irmãs mais velhas não passava despercebida aos mais novos, com a utilização frequente e demorada dos espelhos.
Essa fase dava azo ao acompanhamento dos seus namoros, por acontecerem em casa, havendo a oportunidade de os garotos como eu se insinuarem junto dos pretendentes, que através dos mais pequenos e dos mimos que lhes proporcionavam, tentavam conquistar as boas graças das irmãs mais velhas.
E se eram bonitas as minhas duas irmãs.
Houve bailaricos, tanto na nossa como nas quintas de outros vizinhos, e alguma chantagem fiz com as irmãs quando tinham de obter permissão da mãe para sair, que logo lhes impunha a minha companhia, por ser o benjamim da família.
Fazia-me rogado, mas depois de conseguir alguma pequena vantagem lá ia a servir de guardião, fingindo que nunca via qualquer beijo dado à socapa.
Eu até gostava de ir, mas era útil dizer que era um grande frete.
Como era normal para as pessoas de poucos recursos, sem possibilidade de mandar os filhos estudar, como era o nosso caso, havia que lhes ensinar uma arte.
As minhas irmãs aprenderam costura, bordados e tudo o que está relacionado com esse ofício.
Serviu para terem o seu modo de vida e, com maior ou menor dificuldade, deram aos seus filhos uma instrução diferente daquela que lhes foi proporcionada, o mesmo acontecendo com os outros irmãos.
Sendo o mais novo, tive alguns privilégios.
Logo que completei o ensino primário, tinha onze anos, fui aprender a dactilógrafo para o consultório de um advogado.
Por essa razão fui menos chamado aos trabalhos da quinta do que os irmãos mais velhos, mas não deixei de fazer trabalhos como os de alisar margens em alturas de sementeira, pela madrugada, antes de ir para o emprego.
E ainda outros, como os de ir levar o leite das vacas ao matadouro ou a outros consumidores caseiros, de sachar o milho, de ceifar o trigo, de arrancar e apanhar batatas, de apanhar a azeitona, de colher a fruta, de ceifar a forragem para os animais e muitas outras tarefas das quais o nosso pai não nos libertava.
Sempre com os adágios na boca, justificava o trabalho dos filhos ainda pequenos, que agora seria classificado de exploração infantil, com a frase: o trabalho do menino é pouco, mas quem o perde é louco…!
Hoje louvo tal forma de encarar a vida.
Felizmente tive a oportunidade de trabalhar e estudar o suficiente para conseguir um rumo de vida, sem que isso pesasse no orçamento da família, que exigia dos filhos a quase totalidade do ordenado que ganhavam, até à fase em que teriam de poupar para se casar.
A ajuda de um irmão mais velho – o nosso Tó - foi fundamental nessa fase dos estudos em simultâneo com o trabalho, amenizando algumas das despesas com explicadores e os livros necessários. E já com autonomia própria, foi então possível continuar a estudar, acabando por seguir de forma não consciente o lema “aprender até morrer”. E o recurso a métodos autodidácticos tem sido constante.
Em casa não se governavam filhos que não obtivessem rendimento, para que o agregado familiar pudesse viver o melhor que era possível e de forma equilibrada.
Esse equilíbrio era por vezes desfeito com as doenças e minha mãe foi toda a sua vida uma mulher doente.
Mas uma vez mais o adágio popular a justificar a sua existência até aos 91 anos:- mulher doente é mulher para sempre.
Numa dessas alturas de doença, minha mãe teve de pedir dinheiro emprestado para se deslocar a Lisboa e ser tratada.
Já me encontrava a trabalhar no consultório do referido advogado, quando surgiu no Jornal do Fundão uma espécie de totobola, com um prémio de quinhentos escudos em livros.
Joguei e acertei no prémio da semana, prontificando-se então o advogado, meu patrão, a ficar com os livros por quatrocentos escudos. Na altura era uma importância considerável.
Quando minha mãe soube que eu trazia para casa quatrocentos escudos, numa fase tão difícil da sua vida, só rezava e dava graças a Deus por lhe ter acudido naquele momento, por meu intermédio.
Julgo ter compreendido naquela altura o que é ser útil nos momentos de dificuldade de alguém, e penso que na minha vida tenho sido compensado por esse pequeno acto de generosidade.
Quando as doenças eram prolongadas, num tempo em que os meios para as tratar não eram os melhores, tornava-se fácil induzir as pessoas a recorrer também a mezinhas, curandeiros e às rezas para as debelar.
Assisti a situações dessas em minha casa, mas ainda hoje respeito a regra “a fé é que nos salva, não é o pau da barca”, isto a propósito de alguém incumbido de ir buscar uma pequena porção de madeira da cruz de um lugar de devoção, para curar uma pessoa muito doente.
Porque tinha de atravessar um rio e nesse dia o barqueiro estava impossibilitado de o levar à outra margem, decidiu retirar do remo uma pequena lasca de madeira e levá-la, como se fosse da cruz do tal lugar de devoção.
O efeito produzido foi aquele que as pessoas desejavam e a cruz passou a ser ainda mais adorada e despojada de fragmentos da sua madeira, sempre que alguém em aflição recorria a essa forma para debelar alguma doença.
Porque a pessoa incumbida da tal missão não podia contar a verdade, quando era convidado a confirmar o milagre, limitava-se a dizer aquela enigmática frase “a fé é que nos salva, não é o pau da barca”.

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